O sol proletário

 

Uma utopia, situada em plena guerra civil russa e no coração do que ela programava para o comunismo - é o que imagina Andreï Platônov ao descrever o vilarejo Tchevengur, no romance que leva este nome.[1]

Uma utopia parece exposta ao risco de ser o análogo paradoxal de uma instituição, na medida em que pode se assemelhar a uma forma (o ideal projetado) imposta desde fora sobre uma matéria (o povo) – isto é, o comunismo como “aplicação” deste ideal. Mas os personagens de Tchevengur são ingênuos demais para fazerem um uso tão ruim da noção de modelo. O que dois dentre eles buscam durante a metade do livro é o comunismo como já estando ali; o que eles encontram são formalismos burocráticos aplicados de maneira absurda em lugares desolados.

Depois, eles encontram alguém que vem de Tchevengur.

« De onde você vem ?

– Do comunismo »

Os tchevengurenses sabem bem que o humano não se deixa modelar como o ferro. E eles estão convencidos: o comunismo nasce sozinho se não houver obstáculo.

Talvez em parte é a essa confiança excessiva que se deve seu fracasso, pois eles verificam, às próprias custas, que em situação de guerra civil, ou no império de Stálin, remover os obstáculos não é suficiente.

Se isso não basta, sem dúvida é primeiramente porque é demais pedir a uma cidade que ela seja, sozinha, o comunismo. “Aqui é o comunismo e vice-versa”; todo o problema está nesse “e vice-versa”: o comunismo é aqui (ora, “como se contentar com uma única cidade na Terra?); aqui, e em nenhum outro lugar. Pois alhures já é o retorno da lei.”

“Tudo acabou: de novo é a lei, vimos renascer a diferença entre as pessoas como se um demônio pesasse sobre uma balança”.

O que foi que acabou? O que nunca existiu. Isto é, a utopia: o que não existe, mas cuja inexistência deixa um rastro. É um mundo inexistente que pode mudar aquele que existe.

De onde vem o desejo dos mundos inexistentes? A resposta a mais simples, a mais frequente, talvez seja: da leitura. “Seu pai, que também fora guarda-florestal, havia lhe deixado uma biblioteca composta de livros baratos, escritos pelos piores autores, os menos lidos e mais esquecidos. Ele dizia que as verdades transcendentais da vida permanecem ocultas nos livros abandonados.” (p. 191)

Rancière falaria aqui da “circulação aleatória da letra”, que pode arrebatar vidas, liberando-as do que elas acreditariam ser seu destino.

Claro, é preciso também saber se decepcionar com os livros, mas é para achar o que só eles podem indicar, o que só neles ou através deles se pode encontrar: “realmente a lâmpada ficava acesa em vão durante a juventude de Aleksandr Dvánov, iluminando as páginas dos livros que abalavam a alma, mas que, posteriormente, de maneira alguma o influenciariam. Por mais que lesse e pensasse, dentro dele havia sempre um vazio – um espaço vazio pelo qual, tal como o vento inquieto, passava um mundo indescritível e inenarrável” (p. 90).

Mas quando está a ponto de realizar-se, a utopia é fonte de terror; assombrosa é a iminência do advento do que nunca existiu – ainda que se deseje, mais que tudo, justo esse advento. Os tchevengurianos optam por enfrentar esse terror.

Então o que conduz ao fracasso? Muitas coisas em Tchevengur. O ambiente não é idílico; os personagens são violentos (é preciso massacrar alguns burgueses, mesmo que depois sobre pouca gente); com frequência são ridículos – mas é o ridículo que acompanha certa grandeza. O ambiente não é alegre, estamos mais próximos de um universo de Kafka do que da ilha da Utopia visitada por Thomas More. Mas “a felicidade não é divertida”, como se diz em Max Ophüls; em contrapartida, ela é paciente: “Nesta hora, a felicidade ela mesma procurava seus homens felizes”.

Ademais, há uma loucura nos tchevengurianos: esta vontade de realizar contra tudo e contra todos essa coisa ou essa ideia que, paradoxalmente, eles não conseguem conceber, nem compreender. Portanto, eles tampouco entendem por que, por exemplo, o tédio retorna – o tédio, isto é, a manifestação elementar da inércia dos viventes. Eles subestimam também a importância do desejo amoroso; ora, como o dizia Arendt, o amor é a mais poderosa das forças antipolíticas – o que não é uma crítica, mas o enunciado de um problema.

Na realidade, se a utopia deles acaba, é antes de tudo porque sua experiência, isolada, está exposta não só ao colapso interno, mas também ao esmagamento pelo inimigo.

O que não existiu pode acabar; as tropas estalinistas, por exemplo, podem chegar e colocar um termo. “Os autóctocnes de Tchevengur pensavam que de um momento a outro tudo terminaria; dificilmente se pode ver durar algo que nunca existiu”.

Mas o que é que nunca existiu, e que no entanto pareceu ter um lugar em Tchevengur?

Várias coisas, sem dúvida, mas destaco aquela que diz respeito ao núcleo do capital, a saber, o trabalho.

Em Tchevengur, nada de colocar o corpo para trabalhar: “Os habitantes tinham há muito tempo preferido uma vida feliz a qualquer espécie de trabalho, de instalações, prestação de contas mútua em nome da qual sacrifica-se o corpo humano, esse camarada que só vive uma única vez.”

Tampouco se coloca a alma para trabalhar. Aliás, esta designa o único objeto de preocupação válido: “Aqui, camarada [...] todo mundo tem uma única e mesma profissão: a alma, e é a vida que substitui as profissões”.

Tampouco se coloca os animais para trabalhar; desatrelam-se as charretes dos cavalos. “Não gastarei a vívida vida do cavalo por uma telega morta” (269). E mais adiante: “ele também [o gado] é quase um ser humano; simplesmente, devido à opressão secular, o animal ficou atrás do homem. Mas também está com vontade de ser um humano” (p. 281)

Em Tchevengur, prefere-se as plantas inúteis ao trigo, símbolo da produtividade – e a terra, claro, não é de ninguém.

O sol, e só ele, generoso de calor e de luz, é um proletário a serviço de todos.

A única exceção à recusa do trabalho generalizado é a construção de um monumento em argila para os camaradas presentes. “Não é arte, é o fim de toda mistificação pré-revolucionária que se chamava arte e trabalho; é a primeira vez que vejo uma coisa sem mentira nem exploração”.

Esse monumento é o símbolo precário do que se encontra no coração da experiência de Tchevengur: o comunismo nada mais é que a propriedade mútua dos camaradas. É o que compreende Tchepurni, que faz figura de responsável pelo povoado no momento em que ele vê os sub-proletários (os “mendigos”) aglomerados num túmulo de Tchevengur: “No passado Tchepurni também tinha caminhado com outros homens para ganhar seu pão, ele tinha dormido em granjas, rodeado de companheiros e protegido por sua simpatia para com as calamidades que não se pode escamotear, mas nunca sentiu que poderia beneficiar-se em sua vida da reciprocidade inseparável. Agora, ele via com seus olhos a estepe e o sol, via, entre os dois, os homens do túmulo, mas eles não possuíam nem o sol nem a terra e Tchepurni sentira que em vez da estepe, das casas e dos alimentos e das vestimentas que os burgueses adquiriram, os proletários do tumulo não possuíam seus semelhantes, a tal ponto é verdade que todo homem deve possuir alguma coisa; quando entre os homens existe uma propriedade, eles esbanjam facilmente suas forças para protegê-la, mas quando não há nada entre os homens, eles se esforçam para não mais se separarem a fim de se proteger mutuamente do frio quando dormem.”

O que Tchevengur nos ensina, talvez, é que a visada da utopia, a visada da política que carrega um além da situação presente, e um além do que existiu até aqui, é a comunidade liberada. Não a comunidade humana, pois o que há, a cada vez, é uma comunidade efetiva. Mas uma comunidade efetiva não é uma comunidade dada, circunscrita a seu próprio espaço, colada em sua própria localização. Ela só é efetiva na medida em que o apego que ela tem por si mesma a conduz a carregar mais do que ela mesma.

Uma comunidade efetiva também é um ser, e como todo ser, é mais que um, é mais do que ela mesma. Uma comunidade comunista se reconhece por experimentar esse a mais do que a unidade, e por dar um sentido político a esse desafio.

Comunista é uma forma da comunidade pela qual essa põe para trabalhar sua própria consistência ao colocar simultaneamente para trabalhar sua incompatibilidade com o mundo da economia.

Um movimento comunista se reconheceria por ser composto por esse tipo de comunidades e por sua conexão na ação, um espaço e um tempo próprios, tendo por vocação substituir os contextos criados pelos inimigos.

Ainda é razoável pensar que um tal movimento, um tal espaço e um tal tempo continuam sendo possíveis.

B.A.

Publicado em 19 de novembro de 2021 em In Extremis, Journal de l´aurore.

 

Tradução de Peter Pál Pelbart

 

 

 

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[1] Andrei Platônov escreveu o romance Tchevengur no final dos anos 20. Só foi lançado em sua versão integral na Rússia em 1988. [E no Brasil foi traduzido por Maria Vragova e Graziela Schneider, Ed. Ars e Vita, Belo Horizonte, 2021. Por razões técnicas, só algumas citações do livro provêm da mencionada tradução brasileira, casos em que indicamos a página. N.T.]