Infâncias contra hegemônicas para descolonizar a psicanálise
Ilana Katz
Mesmo quando, da posição de psicanalistas, nos era possível escutar apenas os europeus, sem problematizar a dimensão exclusiva, e, portanto, alienante de nossas fontes, já conseguíamos alcançar a ideia de que o lugar da criança no discurso social não foi sempre o mesmo. Philippe Ariès [1] falou disso nos seus vários trabalhos e, por aqui, repetimos à exaustão suas formulações sobre a história social da criança e da família. Falhamos, porém, em levar essa leitura às suas últimas consequências e produzir, com e a partir dela, uma articulação entre a teoria e uma prática com a criança que se deixasse atravessar, de um modo mais efetivo, pelo fato de que o lugar designado à criança, no laço social, também não é o mesmo para todas as crianças que habitam o mesmo tempo histórico. Os determinantes culturais e sociais se impõem: os marcadores de classe, raça, gênero e deficiência atravessam a experiência da infância para decidir que nossa época não tem uma infância característica, que não há apenas um modo dela existir. As diferenças são tantas, e tão profundas, que não parece exagero dizer que a universalização da experiência da infância incorre num atentado ético porque reduz a experiência humana.
Como psicanalistas que orientamos nossas práticas no campo da infância, avançamos ao aprender, com a antropologia, a referir a infância de nossa época no significante infâncias. A Antropologia da infância há muito tempo trabalha a partir desta perspectiva. [2] Infâncias está proposto como termo significante para apontar que a diferença não está na designação de faixa etária, de tempo de crescimento, de maturidade biológica, ou mesmo, na condição de estudante/aprendiz. A diferença está marcada na geografia, mas também não é geográfica. A questão é territorial e decide hegemonias.
Para enfrentar a universalização da infância, referindo à expressão de Barbara Cassin [3] que tomei como convocatória (ela diz que é preciso “complicar o universal”), foi necessário circunscrever a experiência com um nome, que primeiro foi dito como ‘infâncias não hegemônicas’, e, depois, armou posição em ‘infâncias contra hegemônicas’. Essa substituição do ‘não’ pelo ‘contra’, acredito, movimenta o campo da disputa. Ainda é preciso dizer que aquilo que se chama A infância, e que dispensaria qualificações, é apenas uma entre as tantas experiências diversas que se desenham no acontecimento humano, e essa, que se auto proclama como universal (e, por isso, recusa dizer-se em seus traços) é, no Brasil, branca, rica e filha de famílias cis, hetero e bi parentais, e também não tem deficiência classificada. Bastante gente (gente que manda) cabe nessa normativa, mas... não cabe todo mundo.
O termo ‘infâncias contra hegemônicas’, então, tem apoiado a referência à diversidade populacional que, por muito tempo, foi tomada como grupos populacionais minoritários, mas que não são (e nunca foram) minoria numérica, como é o caso, por exemplo da população negra, que representa 56.2% da população, ou mesmo população de pessoas com deficiência, que tem a incidência expressiva em 24% da população. [4] Todavia, quando populações não hegemônicas são discursivamente reduzidas à condição minoritária, as consequências são severas: implicam na baixa condição de acesso a direitos e a políticas equitárias, e produzem barreiras sociais que impõem a redução de acesso ao espaço público e à circulação social.
Infâncias contra hegemônicas, portanto, refere a modos de viver que não respondem à unidade experiencial e representativa disso que se designou como maioria, e não respondem também à suposta identidade de experiências que o condicionamento ideológico dominante da vida na atualidade quer decidir. O uso da expressão “minoritário”, para referir a uma maioria numérica, denuncia, ainda, a manobra violenta que se faz em relação a esses grupos, que são avaliados a partir de parâmetros não relativos ao seu modo de vida, pois são criados pelo grupo que produz esses critérios, tomando-se como referência.
Enquanto se constroem discursos edificantes sobre o cuidado com as criancinhas, (ilustradas em sua pureza, riqueza e branquitude), distribuem-se os fatores de produção da segregação, esses que operam como efeito colateral da proposição de universais pelo discurso de uma ciência, entendida em uma perspectiva totalizante. É por isso, também, que é fundamental (porque fundante) interrogar a corponormatividade como resposta da época, como universal constituinte e operador da segregação de identidades.
Sabemos (desde Canguilhem [5] ) que os critérios corponormatizantes incidem sobre a experiência humana de forma absoluta para decidir o normal e o patológico de cada época, e, como consequência, comprometem-se com a patologização de identidades. Mais uma vez, então, precisamos lidar com o que “já sabemos” de modo a nos engajarmos em suas consequências, pois, a tal patologização, tem incidências políticas importantes. Nós, “os clínicos”, indutores e induzidos neste discurso, devemos, no mínimo, estarmos atentos aos critérios de produção da diagnóstica. Ao conduzir o foco da problemática da coletividade para as individualidades, o que se consegue, de forma mais ou menos sutil, é moderar a (necessária) crítica política. Nesse sentido, interessa considerar que o modo de dizer da estruturação e da subjetividade não é “isento” (porque jamais é apolítico), e, portanto, pode operar como argumento para a patologização de diferenças, que são constituídas pelas diversas modalidades de produção de vida, e que tem lugar numa mesma época, mas que respondem a territorialidades diversas.
Nesse sentido, é urgente interrogarmos se não estamos respondendo ao embaraço que as infâncias contra hegemônicas constituem na relação com o ideal social, patologizando cada uma das crianças nessa condição, ao invés de escutarmos seu movimento de resistência à segregação e, com elas, fazermos a crítica política. Por razões como essas, enfrentar o universal é, também, desde a condição/posição de clínicos e de psicanalistas, territorializar e racializar a experiência da criança. É assim, acredito, que fazemos valer a diversificação que o ‘s’ do plural quer escrever no significante infâncias.
Se já sabemos tão bem que sujeito responde ao lugar que lhe é reservado no laço social, precisamos considerar, na prática clínica, na pesquisa e na teorização da psicanálise que, no tempo da infância, o sujeito responde ao lugar que é reservado à criança. Nesta perspectiva, 'criança' é o significante que conjuga os termos do desenvolvimento, as possibilidades do corpo e as determinações da época. Comporta, também, as diferenças de cultura e os efeitos da divisão de classes e de marcadores como raça, gênero e deficiência no interior de uma mesma cultura. E é por isso que afirmamos que, no tempo da infância, o sujeito precisa lidar com a criança.
Nesta lida, o sujeito responde ao lugar que lhe é atribuído: recusa, confirma, transforma. O que torna possível a realização de todas essas possibilidades é que ele não fica reduzido ao lugar que lhe é designado, porque não se reduz aos significantes que vêm do Outro. Aqui reside a força da resistência ao estabelecido que as crianças imprimem no seu viver (e que, por sua vez, oferecem elementos para a critica política à sua época). O sujeito é, ele mesmo, uma resposta à sua experiência: acontece como uma resposta do real ao significante. [6] O que se coloca em jogo, por fim, é que cada sujeito lida de uma forma com o que o significante criança designa, porque se trata, sempre, de uma maneira singular de se relacionar com o discurso social.
A antropóloga Clarice Cohn formula muito bem e ajuda a encaminhar a discussão: "as crianças atuam em resposta, e cientes, ao modo como se pensa sua infância". [7] Essa resposta, é bom lembrar, não é, necessariamente, a de submissão, mas, como ela mesma diz, "as crianças atuam desde este lugar, seja para ocupá-lo, seja para expandi-lo, ou negá-lo... É a partir dele que agem ou é contra ele que agem". [8]
A potência da infância em apontar a parcialidade das ficções sobre o viver permite, também, escutar a resistência que as infâncias, como fenômeno político (porque perspectivadas em diversidade), e também cada criança, como acontecimento, impõem à inflagem imaginária da experiência da vida. Esse modo de resistir opera um enfrentamento necessário, e orquestrado pela criança, da proposição de universais hegemonicamente ordenados. O romancista colombiano Andres Barba uma vez disse que “a infância é mais poderosa que a ficção”. [9] É isso.
As infâncias, desde que foram inventadas e como trama de discurso, têm, ao longo da história, operado resistência a uma certa vocação contemporânea de imaginarizar e capturar sentidos para o que resta, para o que não cessa de não se escrever.
Esse modo de resistir, que opera um enfrentamento necessário da proposição de universais hegemonicamente ordenados, explica, se não toda, pelo menos boa parte da articulação da opressão geracional, à qual submetemos a potência transformativa das infâncias.
Essa modalidade da opressão, que se faz entre as gerações e contra as crianças, precisa ser pensada de maneira articulada a toda a série de opressões que instituem as exclusões que ocupam as cidades, e ganham da vida. E, nessa articulação, uma psicanálise que se incomoda [10] não recua, e, porque não escapa do discurso hegemômico por simples vocação, deve se implicar, também, na escuta das causas e dos efeitos das relações de poder entre adultos e crianças.
Na macro política, está dito: a opressão tenta impedir a realização do potencial transformativo das infâncias. Na micropolítica das relações, expressões do naipe de “ criança não sabe o que diz ”, denunciam que essa opressão se organiza minando o saber próprio da criança como elemento que compõe o entendimento do mundo, para, (in)justamente, evitar a demanda de inovação provocada pelas perguntas e pelos gestos que instabilizam e constrangem as certezas do mundo adulto, ao incidirem sobre seu equilíbrio precário.
Quem não sabe o que diz? Certamente não é a Alice, uma menina com deficiência que, aos 8 anos de idade, quando recebeu a vacina contra Covid na sua cidade mineira, declarou por extenso: “Cientistas que criam vacinas são amigos das mães. Vacinas são a nossa vida. Obrigada, cientistas”. Também não é o Davi, o menino indígena, que, também com 8 anos de idade, foi a primeira criança vacinada no nosso país: “eu estou fazendo isso pela minha aldeia”. E não são, também, as crianças da Maré, que, em 2019, endereçaram cartas ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro [11] para contar os efeitos objetivos e subjetivos do que é viver sob uma experiência de violação de direitos.
Pois bem, uma psicanálise também precisa dizer o que sabe, e aqui,
isso quer dizer que precisa pôr sua produção teórico-clínica no jogo e afirmar,
em alto e bom som e pra fora de suas bolhas, que as crianças sabem o que dizem.
Temos um compromisso político com esse debate e o reconhecimento do estatuto do
saber na infância, acredito, é uma importante contribuição. Certamente,
esse saber que refiro aqui não é relativo à dimensão da apropriação formal e
acadêmica do conhecimento historicamente produzido pela humanidade. Ao
corroborar a importância fundamental de escutar as crianças, e o que sabem da
sua relação com a experiência hegemônica, não hegemônica e
contra-hegemônica, esse reconhecimento cumpre a função de legitimar a possibilidade
das crianças de dizerem de si e do mundo em que vivem, ou seja, sua
participação social.
Esse
reconhecimento, assim, também legitima seus testemunhos, como, por exemplo,
aquele veiculado no documento fundamental produzido pelas crianças da Maré.
Quando essas cartas foram divulgadas, talvez o leitor se lembre, o argumento
central que discutia sua legitimidade estava centrado na conversinha fiada de
que as crianças foram manipuladas,
[12]
pois não teriam condições de produzir esse tipo de argumentação, como se ali,
naquela experiência de território, não estivesse a mais profunda condição de um
sujeito se dizer, e contar, para quem quiser e puder ouvir, sobre os efeitos de
ser tomado como
matável
pelos mesmos
agentes do Estado que questionaram sua possibilidade de falar por si.
O saber que está com a criança é consequente da sua condição de ser menos inocente que o adulto frente ao real. [13] Essa formulação é de Didier Weil, [14] psicanalista que, desde 1997, já sugere que as crianças têm uma possibilidade de relação mais vigorosa e efetiva que os adultos com o que se descontinua, com as hiâncias que o viver promove na experiência. Os adultos, Didier Weil vai explicar, encontram isso na experiência do espanto, e as crianças, com a vida. Isso é um saber, é um saber fazer com a vida que está com a criança.
Em tempo de crise sociossanitária, está muito claro que o saber fazer com o que se descontinua deve compor os recursos da humanidade para construir seu caminho, e também é bastante claro que isso tem dimensões políticas indiscutíveis. Quando a promessa de “ recuperar o tempo perdido ” aparece como a ficção da vez, diante do corte da experiência que a pandemia de Covid-19 promoveu, o saber fazer como que se descontinuou, nessa trombada, ganha a dimensão da necessidade e, também, porque não dizer, da inspiração. Afinal, quando a tal promessa de recuperação do que é perda se faz nos moldes de “ correr atrás do prejuízo ”, é urgente escutar que, se “ promessa é dívida ” no pacto da nossa (in)civilidade, quem promete, não paga, e quem paga, está prometido como bem para ser penhorado.
As conjecturas a respeito do tratamento que as falas das crianças recebem – e que aqui situei pelos exemplos das ‘Cartas das crianças da Maré’ e da vivência na crise sociossanitária –, explicitam as relações de poder e mostram a serviço do que se coloca a opressão geracional: a diferença presumida entre ser adulto e ser criança ou jovem (que desqualifica o seu saber e sua possibilidade de participação social), também é uma característica do nosso pensamento desenvolvimentista, e, mais ainda, responde a estruturas de poder muito bem definidas.
Pensar a dimensão geracional implica, necessariamente, considerar a complexidade de sua relação com outras estruturas opressivas presentes nas relações de classe, raça, gênero e deficiência. Nesse sentido, considerar a posição à qual a criança é delegada, ilumina não só o seu lugar e as relações de poder entre adultos e crianças, como também deixa ver as formas como essa dinâmica estrutura outros discursos de poder e práticas de inequidade.
Para caminhar em direção ao que quero formular como proposta consequente a essas considerações na relação com a psicanálise e, especificamente, na relação com a psicanálise com crianças (e também da psicanálise com as crianças, como veremos a seguir), sigo com a proposição da pesquisadora inglesa Erica Burman, em seu Criança como Método ( Child as Method ).
Em Fanon, Education, Action: Child as Method, [15] ‘Criança como método’ é, segundo a própria autora, menos um método do que uma série de compromissos epistemológicos, [16] e sua proposição deve ser entendida como um manifesto para gerar novas agendas de pesquisa. ‘Criança como método’, ela diz, opera como “uma intervenção conceitual a fim de que questões mais interessantes, que melhor se engajem com as complexidades político-culturais, diversidades e fluidez das posições e vidas das crianças, possam ser levantadas”. [17] Ian Parker, no prefácio ao livro, complementa e nos explica que o método proposto toma a figura da criança como um instrumento analítico crítico.
É nesse sentido, tomando a criança como instrumento analítico crítico, que interrogo a psicanálise. Ao fazê-lo, estou seguindo o caminho aberto pelo psicanalista francês Marie-Jean Sauret, que, em uma conferência realizada em São Paulo, no ano de 1998, questionou muito diretamente os psicanalistas que entendem a prática com crianças como uma espécie de subpsicanálise, e nos convocou, a todos, com a seguinte frase : “Diz-me como tratas a criança e te direi quem és”. Naquela altura, ele percebeu que o entendimento superficial e pouco debatido, no interior da psicanálise, sobre o que é uma criança, fez com que a clínica com a criança fosse muitas vezes compreendida por seus pares como uma "clínica sem ato". Essa abordagem da problemática que Sauret propõe, além de ter relações fundantes com sua importante contribuição à clínica, interessa muito à presente discussão, porque sugere que uma concepção de infância que retira da criança a relação de possibilidade com o saber incide também na compreensão que podemos sustentar de sua relação com a verdade e com o gozo e, dito assim, parece ficar mais claro o que está sendo posto desde o início: essa categorização da experiência da psicanálise com a criança como uma “clínica menor”, “menos importante”, ou mesmo “menos psicanálise” (porque “sem ato”), contamina a noção de sujeito da própria psicanálise, e isso, obviamente, não é sem consequências nem para a criança e, muito menos, para a psicanálise em sua clínica, mas também, e sobretudo, na política.
É assim que ‘Criança como Método’, entendo, ampara e viabiliza o caminho a ser empreendido: incide na psicanálise como um convite para participar do debate sobre a criança em um campo instituído na interseccionalidade e, principalmente, para incluir-se como algo que também precisa ser analisado. Uma vez que a ideia de Burman é que “a criança seja tomada como um ponto nodal de um conjunto de práticas, relações sociais e arranjos institucionais, como uma maneira de ler as práticas político culturais, incluindo as acadêmicas”, somar aí - entre arranjos institucionais e as relações sociais -, as práticas clínicas da psicanálise (e também suas teorizações), pode ser de grande valia para a operatividade de uma crítica política que nos interessa.
Com a intenção de sustentar o argumento proposto no texto, e no caminho para concluir essa conversa, aponto apenas para uma das consequências dessa articulação, que pretende mostrar a imbricação da clínica com a política: as considerações sobre as formas de dizer a criança para enfrentar a patologização da vida, e a segregação que ela opera, obviamente, reverberam nos modos de dizer a família. Afinal, como é fácil presumir, desconsiderar a dimensão complexa e a multideterminação da experiência no modo de tratar a criança é, também, responder ao cuidado pelo alinhamento discursivo às proposições hegemônicas, aquelas que tomam um modo de vida como modelo de saúde para, como discutimos, oprimir os outros todos, através da patologização da diversidade. É assim que a normatização da infância se relaciona com a normatização da família e opera classificações absurdas, como ocorre, por exemplo, no caso de permitir que se diga uma família como disfuncional para referir a sua inadequação ao modelo hegemônico.
Nós psicanalistas não estamos autorizados a esquecer o compromisso com a escuta das crianças em sua diversidade (porque escutar crianças nunca quis dizer escutar um modo de ser criança apenas), mas, também é preciso dizer, precisamos nos perguntar se, em nossos modos de dizer a criança e sua família, participamos do debate politico engajados no enfrentamento da segregação ou se, fazendo um uso específico de nossos modos de entender e de dizer a estrutura subjetiva, não participamos da consolidação dos discursos patologizantes.
Jaqueline Rose, no podcast da London Rewiew Bookshop, [18] apresenta seu livro Mothers. An essay on love and cruelty situando muito bem uma ideia que pode nos ajudar a encaminhar a questão: a experiência da maternidade é sempre, para as mulheres, uma experiência de falhar, de não conseguir, de perder o controle e, paradoxalmente, as mães, como ‘entidades’, são socialmente tomadas como emblemas de sanidade, de saúde e de segurança. O peso deste despropósito tem como efeito, para as mulheres que se deparam com sua divisão, a produção de um saber, que Rose diz de um jeito muito interessante: “Ser mãe é saber que o mundo é injusto”.
Isso posto, e dito dessa maneira tão clara, abre muitas questões para um psicanalista, no âmbito privado de sua clínica, mas também interroga a psicanálise em seu engajamento discursivo. Ainda que situados no lacanismo, e orientados a pensar a subjetivação pelo exercício de funções (materna e paterna), e nunca pela versão imaginária das figuras de sua execução (um papai e uma mamãe), não estamos blindados da possibilidade de idealização da família e, menos ainda, da mãe. A ideia que já foi tão ampla e irresponsavelmente divulgada, de que seria possível, através de um determinado modo de realizar as funções materna e paterna, prevenir riscos psíquicos, dá sinais de que, ao se deixar tomar pela vertente imaginária do exercício da parentalidade, uma psicanálise fracassa porque, ao invés de ‘complicar o universal’, como sugeriu Barbara Cassin, mistifica a função materna e participa da idealização da maternidade.
Esta última leitura está aqui colocada de forma bastante concisa porque interessa dispor a extensão do compromisso que precisamos assumir. Convocados pelas infâncias contra hegemônicas e por suas famílias, precisamos revisitar nosso modo de dizer as experiências, e isso precisa mesmo acontecer para que nossas práticas não incorram no erro político de patologizar a diversidade da experiência humana e, ao invés de subverter o ordenamento da distribuição de poder, oferecer argumentos imaginários para a manutenção da sua concentração.
Ilana Katz é psicanalista e pesquisadora na área da infância, doutora em psicologia e educação na Faculdade de Educação da USP e pós doutora em psicologia clínica no Instituto de Psicologia da USP.
[1] P. Ariés, História social da criança e da família . São Paulo: LTC, 1978.
[2] C. Cohn, “Concepções de infância e infâncias: um estado da arte da antropologia da criança no Brasil, Civitas - Revista de Ciências Sociais, v 13, n 2, 2013, pp. 221-224.
[3] B. Cassin, Elogio de la traducción. Complicar el universal . Buenos Aires: El cuenco de plata, 2019.
[4] Dados disponíveis no site do IBEGE em: https://sidra.ibge.gov.br/tabela/3425 e https://sidra.ibge.gov.br/tabela/6408
[5] G. Canguilhem, O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2009.
[6] Como formulou Sauret, "trata-se de uma resposta do real ao significante - quer ela seja feita de aceitação ou de recusa, o sujeito surge como consequência, levando a marca dessa recusa ou dessa aceitação: não há sujeito fora da linguagem, mesmo que todo 'o real do sujeito' não passe ao significante".
M.-J. Sauret, O infantil e a estrutura. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 1998, p. 16.
[7] Clarice Cohn, Concepções de infância e infâncias Um estado da arte da antropologia da criança no Brasil, Civitas, n 13, v 2, 2013, p. 240.
[ 8] Ibid., p. 241.
[9] A. Barba, República luminosa , São Paulo: Todavia, 2018, p. 71.
[10] Significante que recolhi no Manifesto de Andrea Guerra que convoca esse movimento que fazemos aqui e no qual esse texto se inclui.
A. Guerra, “Manifesto por uma psicanálise decolonizada”, in A. Guerra e R. Lima, A psicanálise em elipses decoloniais , São Paulo: n-1 Edições, 2021, p. 13.
[11] F. Betim, As cartas das crianças da Maré: “Não gosto do helicóptero porque ele atira e as pessoas morrem”, El Pais , 14/08/2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/08/14/politica/1565803890_702531.html . Acesso em: 21/03/2022.
[12] Extra, Presidente do TJ-RJ questiona autenticidade de cartas de crianças e moradores da Maré, Extra , 15/08/2019. D isponível em : https://extra.globo.com/casos-de-policia/presidente-do-tj-rj-questiona-autenticidade-de-cartas-de-criancas-moradores-da-mare-23881002.html Acesso em: 21/03/2022.
[13] Essa discussão está feita com mais profundidade em: Ilana Katz, “O recurso à criança para dizer o indizível”, Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. 11, 2021, p. 5. Disponível em: https://revistalacuna.com/2021/07/20/n-11-05
[14] A. Didier-Weill, Os três tempos da lei. O mandamento siderante, a injunção do supereu e a inovação musical. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
[15] Erica Burman, Fanon, Education, Action: child as method. London and New York: Rouledge, 2019.
Ainda não temos uma tradução brasileira desse trabalho, que considero incontornável para o campo ao qual se dirige, mas a boa notícia é que está prometida para o segundo semestre desse ano de 2022.
[16] ‘Child as method’ é um nome proposto na relação com a discussão metodológica que a expressão ‘Ásia como método’ ordena no campo da pesquisa científica, e que a autora explica, logo no início do seu livro. Talvez por isso, ela tenha mantido a (muito bem vinda) convocação provocativa na construção ‘Criança como método’.
[17] Erica Burman, op. cit., p. 199.
[18] Mothers: Jacqueline Rose and Devorah Baum. London Review Bookshop Podcast. 7 de maio de 2018, 58min.