Geopolítica ou psicopatologia?
Entrevista com Franco Berardi (Bifo)
por Amador Fernández-Savater
O que aconteceu com o desejo – íntimo e social – na pandemia? A visão política tradicional da esquerda, que reduz tudo o que se refere à subjetividade à esfera privada, não faz essa pregunta. É a extrema direita então que canaliza os mal-estares que hoje percorrem os corpos.
A pandemia causou um fenómeno generalizado de apagão libidinal, uma retirada do desejo dos lugares, dos objetos, das atividades que investia. Essa retirada é ambivalente − por um lado, falta de vontade, abatimento, depressão. Mas também fuga da competitividade, da busca pelo sucesso, do consumo. Essa ambivalência atravessa acontecimentos como a “grande renúncia”, o êxodo das grandes cidades ou o que fica oculto sob o rótulo midiático de “síndrome da cabana”.
Não estamos diante de movimentos políticos evidentes, como a fuga do trabalho alienado durante os anos 1960 e 1970. Seremos capazes de escutar esses fenômenos impuros e ambivalentes? Eis a aposta do pensador italiano Franco Berardi (Bifo) em seu último livro, El tercer inconsciente; la psicoesfera en la época viral (Caja Negra Editora).
Isso pede uma mudança de visão: deslocar-se dos saberes dominantes da sociologia ou da geopolítica para uma psicopatologia ou psicopolítica. Ou seja, construir uma nova razão sensível, capaz de sintonizar as correntes de desejo que atravessam a sociedade.
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Apocalipse, pandemia e guerra
Bifo : Para começar, eu queria falar umas palavras sobre o livro e seu contexto. Em setembro de 2020, li um depoimento da diretora da Agência de Saúde do Canadá que dizia: “Skip kisses” (evite os beijos), “in any case you have sexual relations don´t forget to wear sanitary masks” (em caso de relações sexuais, não esqueça de usar a máscara sanitária), “anyway in the present condition the best is going solo” (nas atuais condições, melhor ficar só), uma expressão que eu nunca ouvira antes.
Quando li essas palavras, percebi que o que estava acontecendo era uma mutação que afetaria a vida social comunitária num nível muito profundo, modificando a percepção do corpo do outro, da pele do outro, dos lábios do outro; os lábios não são apenas um local de acesso ao prazer, mas também um lugar onde o sentido, o significado é produzido e comunicado.
O velho hippie que eu sou teve em primeiro lugar uma reação de preocupação e pessimismo. Mas depois falei para mim mesmo: tentemos não julgar, não tirar conclusões apresadas, mas viver esse processo, essa passagem, o que eu vislumbrei como limiar, um longo limiar de transformação − tentemos ver esse limiar como a passagem para um terreno desconhecido.
Nos dois anos da pandemia, minha principal atividade foi tentar entender as mutações psíquicas, as mutações da subjetividade social; sobretudo na geração que agora está crescendo, que está descobrindo o mundo, que está descobrindo o corpo do outro. Nessa pesquisa tenho me sentido acompanhado por um grupo que se reúne duas vezes por semana desde o começo de abril de 2020, o Grupo Intercontinental de Pesquisa sobre a Pandemia, um coletivo de amigos e amigas, a maioria psiquiatras e psicanalistas, mas também trabalhadores de saúde e psicoterapeutas.
Tenho procurado responder a essa questão com a imagem do “terceiro inconsciente”, a ideia de que estamos entrando na era do terceiro inconsciente. Os que se ocupam seriamente dessas coisas podem rir das minhas palavras, porque o terceiro inconsciente não significa nada. Não existe um primeiro inconsciente, um segundo inconsciente − o inconsciente não tem história. Mas há sim diferentes psicoesferas, campos de cruzamento entre o social e a psique. Uma primeira psicoesfera é o inconsciente de que fala Freud, quando diz que o inconsciente é efeito de um recalque e que se manifesta através de um mal-estar de tipo neurótico. Uma segunda psicoesfera seria o inconsciente neoliberal produzido pela extrema aceleração do universo econômico, social, linguístico, comunicacional e, especialmente, do universo dos estímulos informacionais e psíquicos. E assim passamos da neurose à psicose como manifestação privilegiada do mal-estar.
O livro se pergunta se há uma terceira psicoesfera, o inconsciente da pandemia. Nestes anos, a aceleração se deteve e aconteceu uma “psicodeflação”: uma redução da energia de aceleração que caracterizou os últimos 40 anos. Quais serão os efeitos dessa psicodeflação? Eis a pergunta que faço no livro.
Mas agora, com a permissão do editor, estou achando que esse livro já nasceu velho, pois ultrapassamos o limiar numa nova direção: a guerra . Qual é a relação entre a pandemia e a guerra? Entendo que a guerra atual é uma reação agressiva diante da psicodeflação pandêmica, uma resposta à depressão global.
Amador : Eu queria trazer à consideração, para começar, um texto que li recentemente, de um autor que não frequento muito e que é o pensador judeu Emmanuel Lévinas. Trata-se de um artigo de 1946 em que ele reflete sobre a experiência dos campos de concentração nos quais ficou confinado durante a guerra. Num momento, ele diz: “Nos campos conhecemos a expectativa do fim do mundo”. Não se refere ao fim do mundo físico, mas à explosão das categorias que organizam o sentido da nossa experiência do mundo. E citando o profeta Isaias, afirma: “Findada a guerra, esperávamos um novo céu e uma terra desconhecida”. Ele chama isso de uma “sensibilidade apocalíptica”. A palavra apocalipse possui dois sentidos: o fim do mundo e o desvendamento ou revelação. A sensibilidade apocalíptica é a sensação de que aquilo que existe não se sustenta mais, e então é preciso “um novo céu e uma terra desconhecida”.
Mas o surpreendente, diz Lévinas, é que após a guerra voltou a normalidade, o mundo se refez como se nada tivesse acontecido. Não somente na banalidade cotidiana, mas na repetição do pior: em 1946 acontece o pogrom antijudaico de Kielce. E então Lévinas se pregunta: “Foi apenas vaidade?” (eis o título do texto).
E a sua resposta é não: é preciso trabalhar para colher os efeitos do desvendamento, para que não se desvaneçam e que nem tudo seja vaidade de vaidades. É necessária uma “ingenuidade superior” para não dar por encerrada a experiência e que os mortos meramente passem a engrossar as estatísticas. É trabalho de uma vida registrar e pensar os efeitos da revelação.
Este livro também nasce de uma sensibilidade apocalíptica. Você tem visões no confinamento da pandemia. Ele vê o fim de um mundo, e a possibilidade de um outro. É um livro cheio de pontos de interrogação. Será a crise do coronavírus a ocasião perfeita para um aprimoramento do sistema, ou o início de uma deriva existencial, cultural, política?
O livro é ingênuo no melhor sentido possível. Nesses últimos anos temos visto os pensadores mais conhecidos simplesmente reconfirmando suas posições prévias, sem se deixar interrogar pelo que estava se passando. O caso de Giorgio Agambem é o mais conhecido, mas não o único. Geralmente, os pensadores não se animam a tamanha ingenuidade caso não saibam tudo de antemão.
A experiência que atravessamos ainda está para ser contada e pensada. Ela não passou: ainda que não surja nenhuma mutação do vírus, tem deixado marcas profundas em nossos corpos. Marcas de terror, de distância social, de obediência, mas também de desvendamento. Tudo isso é o que você está pensando.
Como não vai ter atualidade? Não se deve ceder ao tempo da conjuntura: há de se resistir à vaidade de vaidades, registrar os lampejos de revelação, e este livro é uma estupenda ferramenta para isso.
Geopolítica ou psicopatologia?
A primeira pergunta que queria te fazer é de método, ou de visão. Num texto recente sobre a guerra na Ucrânia, você diz uma coisa que me interessou muito: “Não precisamos de uma geopolítica, mas de uma psicopatologia ou de uma psicopolítica”. Não necessitamos tanto de um pensamento das determinações macro que nos definem, das determinações sociológicas, políticas, históricas, mas sim de um pensamento, uma sensibilidade capaz de apreender as flutuações do desejo, os estados de ânimo, a produção de subjetividade. Uma outra maneira de pensar. Por isso a primeira pregunta é: o que seria uma visão psicopolítica ou psicopatológica?
Bifo : Geopolítica ou psicopatologia? Naturalmente, a geopolítica tem um papel para entender o mundo contemporâneo, mas o problema é que ela se restringe a descrever efeitos de superfície. Precisamos entender o que está ocorrendo num nível muito mais profundo − no nível dos investimentos de desejo, no nível da mutação psíquica diante de uma aceleração caótica dos processos sociais.
Para entender a genealogia do nazismo hitleriano é preciso captar o sentimento de humilhação que se espalhou pela Alemanha após o Tratado de Versalhes. O medo e a depressão foram compensados por uma tremenda reação agressiva. Tem um filme de Ingmar Bergmam chamado O ovo da serpente que conta justamente a genealogia do nazismo do ponto de vista de uma situação psicótica cotidiana. No início do filme, vemos uma multidão em preto e branco que aparece como que adormecida e, no final, essa multidão se transforma numa massa agressiva e pronta para a guerra.
Acredito que estamos numa situação de depressão epidêmica parecida. Na Itália, entre os 15 e os 30 anos, há uma multiplicação dos suicídios. Há uma predisposição para a depressão da qual temos que falar se quisermos entender o que está acontecendo. Não quero dizer que a guerra na Ucrânia possa ser reduzida a um assunto de psicanalistas. Porém a psique dos russos, dos ucranianos, de todo mundo, hoje se encontra numa situação de depressão e de possível reação guerreira compensatória. A geopolítica não explica nada disso.
O retorno da Terra
Amador : Eu gostaria de te perguntar sobre a distinção que você faz entre Terra e Mundo. O Mundo seria aquele “objeto” que a política clássica acreditou dominar, de Descartes a Maquiavel. Mas a Terra é uma coisa muito diferente, o indomesticável. O vírus seria uma manifestação da Terra. Poderia desenvolver isso?
Bifo : Tomo essa distinção de um pensador japonês chamado Sabu Kosho. Sabu escreveu um livro chamado Radiation and Revolution. É a narrativa da experiência de um ativista e também filósofo que vivenciou a catástrofe de Fukushima trabalhando entre as personas atingidas pelo tsunami. Sabu analisa a reação após um acontecimento tão horrível e destrutivo. Nesses momentos, diz ele, somos como estranhos num planeta alheio que desconhecemos e onde tentamos sobreviver.
Ele propõe diferenciar entre Mundo e Terra. O que é o Mundo? É o fruto da nossa atividade linguística, política, econômica, produtiva, a evolução da civilização e do que poderíamos chamar de cultura num sentido filosófico, antropológico. O mundo se encontra cada vez mais desafiado pela Terra, pelo retorno de forças que não podemos dominar: os incêndios que destroem regiões enormes do planeta, as águas dos oceanos e tudo o que conhecemos como catástrofe ecológica, um processo hoje acelerado pela guerra. A Terra é isso, a natureza que hoje retorna, inclusive a natureza humana.
O neoliberalismo afirma-se de entrada como darwinismo social, segundo esse pensamento essencialmente falso, ideológico, de que na natureza sobrevive apenas o mais forte e que é preciso aceitar a economia como a natureza, onde os mais fortes vencem. Mas nisso há uma mistificação. Se nos definimos como humanos é porque houve uma ruptura cultural que nos permite considerar a natureza como algo muito belo e gentil, mas também violento e perigoso. Por isso inventamos coisas como a linguagem, a solidariedade social ou o Estado, que odiamos e com razão, mas que nasce diante do problema da natureza como perigo mortal.
A agressividade da natureza voltou porque o neoliberalismo nos disse que o mais forte deve vencer. E o mais forte é o vencedor neoliberal, o mais forte é Vladimir Putin: a força dos fortes é a guerra .
Psicodeflação
Amador : Isso me faz lembrar de tudo o que diz Isabelle Stengers sobre a “intrusão de Gaia” . Eu gostaria de passar para o tema do terceiro inconsciente. O que provoca − acelera, radicaliza, manifesta – a crise do coronavírus? Um total apagão libidinal, a psicodeflação. O que você pode dizer a respeito desse terceiro inconsciente? Embora seja ainda um território desconhecido, magmático, em ebulição, quais tendências você detecta? O que você pode compartilhar conosco desse trabalho junto a psicanalistas e terapeutas que você vem desenvolvendo há dois anos?
Bifo : O terceiro inconsciente é definido em relação à inflação psíquica da época neoliberal: uma aceleração extrema do corpo e da mente coletiva que visa um aumento continuo da produtividade, sobretudo da produtividade intelectual, do trabalho cognitivo, uma exaltação da energia como força produtiva e capacidade de domínio da realidade. Evidentemente, o vírus quebra essa corrida de tamanha aceleração.
O que o vírus? É uma concretude material invisível, um retorno da matéria que a abstração do capitalismo financeiro tentou esquecer , suprimir, cancelar. A matéria volta e rompe a continuidade das cadeias produtivas, das cadeias de distribuição, provocando o great supply chain disruption de que falam os americanos, mas também das cadeias afetivas.
Essa desaceleração ou psicodeflação se apresenta como um efeito depressivo do ponto de vista psíquico, é a sensação de ter perdido algo. Perdemos, em primeiro lugar, a força política de governo da realidade. O vírus é um caotizador universal, diria Félix Guattari, é um produtor de caos em massa. E o que é o caos? O caos não é uma realidade restrita, mas uma relação entre a mente humana e o ambiente, o ambiente físico, comunicacional, linguístico. Há caos quando o cérebro não consegue dar conta de uma realidade que se torna mais rápida e complexa do que podemos processar.
Mas quando entramos numa dimensão caótica, sempre há idiotas que dizem: “guerra ao caos”, guerra ao vírus, às drogas, ao terrorismo. E o que acontece então? O caos se multiplica por 100. O tráfico de drogas, as máfias, o terrorismo, as catástrofes. O caos se alimenta da guerra. Guattari nos sugere aprender a ouvir o caos, ouvir a voz do caos, aprender um ritmo novo, porque o caos é isso, um novo ritmo. A psicodeflação foi uma reação saudável, entre aspas, diante do caos. Lentificamos, desaceleramos.
O mundo branco, o mundo cristão, o que chamamos de Ocidente, é muito vasto e abarca a Rússia. E a Rússia é o Ocidente, do ponto de vista cultural. A força que move a história e a cultura russa é a mesma força que move os Estados Unidos e a Europa: a força da dominação agressiva, a força da expansão, a força do futuro. A palavra futuro é central para compreender o que estou tentando dizer. No pensamento ocidental o futuro significa expansão, e o problema é que a expansão se esgotou. Hoje se tornou impossível, só podemos nos expandir por meio do massacre, do massacre da natureza em primeiro lugar. O crescimento econômico, esse mito total, central do pensamento econômico, compartilhado por todos os políticos, de direita e de esquerda, significa hoje unicamente catástrofe, destruição, morte .
O futuro acabou e estamos envelhecendo. O envelhecimento é um fato absolutamente central no Ocidente (e com certeza também na China). O que é o envelhecimento? Uma perda de energia, de potência, de futuro, obviamente. Mas o cérebro ocidental não consegue tolerar a ideia do fim da expansão. A nossa civilização sempre recalcou o envelhecimento e a morte como experiência essencial da vida humana, o que no livro chamo de “devir-nada”. Precisamos falar desse devir-nada se queremos sair da loucura da guerra, da destruição total, da bomba nuclear, pois os velhos preferem levar o mundo inteiro para o inferno junto com eles antes de aceitar a morte e o devir-nada.
O que aprendi com a experiência do Grupo de Internacional de Pesquisa sobre a pandemia? Uma coisa essencial: contra o pânico, só existe uma vacina, e essa vacina é pensar juntos. Pensar e, mais ainda, pensar juntos, tem uma enorme potencialidade terapêutica e política. O único que podemos fazer neste mundo em que se confunde o Mundo com a Terra e não entendemos onde estamos nem como sobreviver, o único que podemos fazer para fugir do pânico e da depressão é pensar juntos .
Amador : Difícil fazer isso quando o encontro entre corpos está proibido . O mais duro de suportar nesse tempo, para mim, foi a dificuldade de inventar modos de pensar juntos. O terror atomiza, e contra Descartes, é preciso dizer que não há um eu que pense sem um você que responda. O campo do pensamento crítico ficou estreito demais, qualquer dúvida em relação ao discurso oficial imediatamente é qualificada de delírio negacionista . E agora, na situação de guerra, vigora também essa espécie de obrigação de ter que tomar posição num tabuleiro prévio, ter de escolher entre Putin o a ideia ocidental de liberdade, que são fundamentalmente a mesma coisa, como você já explicou.
A resignação contra a abstração
Queria voltar à experiência do primeiro lockdown. Uma experiência ambivalente. De um lado, o terror e o distanciamento social; do outro lado, aplausos, solidariedade e a sensação de que o que existe não mais se sustenta. A palavra de ordem que circulou de varanda a varanda foi que não havia que voltar à normalidade pois a normalidade era o problema. No silencio, na desaceleração, experimentamos lampejos de uma outra vida possível.
Porém a minha impressão é que não soubemos prolongar esse momento, abrir essa bifurcação. Na saída desse primeiro confinamento, ficamos sem voz. No livro há um momento em que você diz que se não emergir uma nova subjetividade, o possível se perde, esvai-se. É a vaidade das vaidades. Mas de que tipo é essa nova subjetividade? Que tipo de força pode empurrar uma passagem de limiar diferente, prolongar o acontecimento, impedir que as suas marcas desapareçam, abrir una bifurcação existencial, uma outra deriva civilizatória?
Bifo : Para mim, o primeiro confinamento foi uma experiência bastante alegre, mas para muitos jovens não foi, de jeito nenhum. A mídia os atacou, falou um monte, desqualificou e criminalizou os jovens por quererem tomar uma cerveja. Mas eram os jovens os que pagavam o preço mais alto para salvar os velhos. Como avô, eu agradeço muito, porém não posso recriminá-los se eles querem beber uma cerveja.
De repente, o pensamento de uma mudança de paradigma social se alastrou. Na Itália é evidente para todos que a catástrofe sanitária foi, sobretudo, um efeito da destruição neoliberal do sistema público de saúde. Todos pensamos que iríamos presenciar um retorno do keynesianismo, de um pensamento social da economia, mas não foi assim. A ideia de que o capitalismo possa ser racional e humano é uma ilusão. O que aconteceu foi uma radicalização do empobrecimento e o enriquecimento privado dos super-ricos.
Por que ocorreu isso? Como podemos evitar as consequências catastróficas que estão aparecendo? A minha resposta está embutida na palavra psicodeflação, mas com uma evolução linguística muito interessante: a palavra “resignação”. Quando pensei nela pela primeira vez, achei uma blasfêmia. A minha formação materialista e marxista se rebelava contra ela. Mas depois li num jornal norte-americano a expressão “ great resignation ” (grande resignação/renúncia). Como sabemos, quatro milhões e meio de norte-americanos decidiram não retornar ao trabalho depois da pandemia, e o mesmo acontece na China − cada vez há mais gente jovem e não tão jovem que se pergunta: por que tenho que trabalhar por um salário de merda , em condições humilhantes, inaceitáveis, idiotas?
A palavra resignation tem dois sentidos. O primeiro é aceitar o inaceitável. Contudo, o outro é renunciar, abandonar o campo social, o campo produtivo, ir embora para sempre. Esse segundo significado me fez pensar num terceiro: re-signation, a ressignificação. É preciso ressignificar a nossa relação com a necessidade, com a natureza, com nossas formas de vida cotidiana, ressignificar a relação entre o concreto, o útil e a produtividade.
A primeira página d’O Capital explica que o coração do capitalismo é abstração, o capitalismo é um processo de acumulação de valor abstrato que significa ex-trato, extraído, o valor que o capital extrai da vida concreta, das necessidades concretas, das potências concretas da humanidade. Hoje o que mais me interessa é o retorno do útil e o concreto.
A morte como condição da liberdade
Amador : Uma última pregunta. Há uma frase famosa de Espinosa que diz: “Não há nada em que um homem livre pense menos do que na morte”. Contudo, você diz que, hoje, para recuperar a liberdade, temos justamente que nos amigar com a morte, voltar a pensar nela e nos tornarmo amigos do devir-nada.
Bifo : Pode ser que Espinosa tenha se enganado, né? Um homem livre não pensa na morte, pode ser, mas somos porventura homens livres? E além disso, o que significa a liberdade? A associação entre liberdade e potência acaba em formas histéricas do pensamento da política.
A histeria de toda a modernidade é a identificação entre liberdade e potência, a ideia de que a potência se manifesta no interior da dimensão da liberdade e que a liberdade é ilimitada. Mas não, meus queridos, você tem a liberdade de se jogar do quinto andar, mas você se mata. Não é verdade que a potência se manifeste no interior da liberdade, ao contrário: a liberdade se manifesta no interior da potência, e a potência não é ilimitada. A morte é um problema que possui uma importante dimensão filosófica, psicanalítica e política.
A modernidade branca e imperialista rejeitou o pensamento da morte porque pensou a potência na dimensão da liberdade ilimitada. Essa liberdade ilimitada foi a máscara da escravização da maior parte da humanidade, a liberdade neoliberal, a liberdade norte-americana, a liberdade da Constituição dos Estados Unidos, uma Constituição escrita por negreiros, por escravagistas. Quando na convenção que redigiu a declaração constitucional americana se questionou o problema da escravidão, ficou decidido adiar a discussão. O resultado? O neoliberalismo reproduz hoje um efeito da escravidão em massa, generalizada.
Agora estamos à beira da morte da civilização branca. Isso parece um abismo aterrorizante e catastrófico, mas não! A morte é uma experiência de vida. É preciso pensar a morte como limite, como condição da liberdade, a livre morte, a liberdade de morrer. Mas ficamos fascinados diante de uma pretensão histérica da nossa potência ilimitada, romântica e fascista. Pensar a morte, ironizar sobre ela, como faz Salman Rushdie em seu último romance, Quichotte, é a única possibilidade de sair da história do Ocidente, da histeria assassina e suicida do Ocidente, da ideia da potência ilimitada.
A base desse texto foi a conversa entre Franco Berardi ( Bifo) e Amador Fernández-Savater em La Maliciosa (Madrid), em 24 de março de 2022.
Tradução de Damian Kraus