Gaguejar o mal-estar na cultura

Sophie Mendelsohn

 

Em entrevista datada de 11 de fevereiro de 2022[1] e suscitada pelo lançamento de seu novo filme, Nous,[2] a jovem cineasta francesa Alice Diop, que também está na origem de uma iniciativa intitulada "Cinemateca Ideal dos Subúrbios do Mundo", sustentava que fazer filmes a havia permitido não enlouquecer. Ela não diz mais sobre este ponto, mas podemos sem dúvida reportar essa confidência pública – seria antes uma forma de interpelação? – ao fato de ter começado a filmar aos 25 anos, em 2005, no contexto das revoltas provocadas no subúrbio de Paris pela morte por eletrocussão de dois jovens, Zyed e Bouna, que tentavam fugir da polícia. O episódio colidiu frontalmente com a narrativa nacional francesa e a “solução universalista” que a sustenta. Se "enlouquecer" também pode significar experimentar uma alteridade sem dialetização possível, ser um(a) outro(a) sem identidade atribuível, enquanto estiver sendo atribuído a esta não-identidade, então "não enlouquecer", mas tudo poder se tornar, é uma forma de reenviar a essa “solução universalista” a própria mensagem em sua forma invertida.

Em texto publicado em inglês em 1966 e intitulado "The decolonization of myself ",[3] Octave Mannoni já comentava que "a solução universalista é tão agradável que abre um paraíso imaginário, de justiça e felicidade, que não é fácil criticá-la." E que, ao tentar fazê-lo, corre-se o risco nos dias de hoje de se expor à acusação de identitarismo – ou seja, no atual contexto político francês, o que a esquerda republicana considera uma espécie de loucura... O que justifica o uso dessa categoria de identitarismo é a angústia de ter que lidar com o triunfo do idios – “si mesmo como um rei”, como argumenta a historiadora da psicanálise Elisabeth Roudinesco em seu último livro.[4]

Construir uma posição de enunciação levando em conta um traço particular (quer seja uma questão de ser judeu ou muçulmano, de ser lésbica ou de ser trans, negro(a), etc.) significaria sacralizar a identidade e, assim, ameaçar a coerência do conjunto social – o que supõe, ao menos implicitamente, conceber a nação como um todo tendendo à homogeneidade. Os(as) "identitários(as)" podem assim ser qualificados(as) como narcisistas, mas também como comunitaristas e separatistas... No entanto, o que se cultiva à vontade na mobilização dessa categoria, entre aquelas e aqueles que se beneficiavam até então do "privilégio do homem branco",[5] não seria sobretudo o mal-estar suscitado pelo desmentido da solução universalista por aqueles que até agora suportaram o peso dela, a ponto de não mais poder respirar ou correr o risco de enlouquecer, como indica Alice Diop?

É especialmente por interrogar esse ponto de tensão, tornado particularmente quente no momento pela atual campanha presidencial, que o Collectif de Pantin se formou há quatro anos, de forma independente, para tentar fazer existir uma outra cartografia da questão e construir com os conceitos da psicanálise uma bússola para se orientar de modo crítico. Isso supunha tanto afastar-se dos interditos mais ou menos explícitos ao pensamento, produzidos pelas instituições psicanalíticas francesas, quanto conectar-se com outras tradições críticas, menos subjugadas pelo universalismo abstrato herdado do Iluminismo, mas mantendo-nos preocupados em pensar localmente, a partir do que nos dizem nossos(as) pacientes – razão pela qual a constituição deste grupo internacional de psicanálise decolonial[6] é bastante gratificante![7]

Na entrevista já citada, Alice Diop também questionou um fenômeno a partir do qual eu gostaria de retomar aqui a complexa questão do supereu em suas relações com o mal-estar na civilização:[8] trata-se da gagueira. A própria cineasta faz disso um uso metafórico: constatando que já existiam filmes que tratam exatamente dos problemas que ela mesma deseja abordar hoje, como Losing Ground, de Kathleen Collins – neste caso, uma figura do movimento pelos direitos civis nos EUA. Ela se pergunta por que eles de fato permaneceram inacessíveis. O resultado é que “estamos fadados a gaguejar o tempo todo… Estaríamos mais longe no cinema se não tivéssemos que repisar para encontrar algo que já existe. Eu me pergunto sobre o significado político dessa transmissão interrompida”. Poderíamos ser tentados a banalizar essa observação enfatizando – o que não seria falso –, que a transmissão da cultura nunca é garantida ou integral, e que, em maior ou menor medida, cada geração a reinventa de forma um pouco diferente, ignorando o que a anterior havia construído.

Se não quero ceder a essa tentação de banalização é porque essa observação também faz eco ao sentimento de mal-estar regularmente expresso por militantes, mas também por teóricos(as) críticos(as) da raça, ou ainda por nossos(as) pacientes: no que concerne às questões de raça e racismo, é sempre necessário dizer de novo, repetir, como se nunca se inscrevesse realmente, como se tivéssemos que recomeçar do zero a cada vez, como se a "solução universalista" viesse sempre a mascarar e encobrir a perturbação na cultura produzida pela questão da raça. Há algo aí que não é metafórico e do que estaríamos bem advertidos(as), parece-me, de tomar literalmente e precisamente: a gagueira inscreve discretamente e torna legível na própria linguagem, na letra da linguagem, por assim dizer, as coordenadas de um mal-estar na cultura que também precisa da história, não apenas da linguagem como estrutura do inconsciente, para se esclarecer – e mais precisamente de sua dobra imperialista. Antes de chegar a isso, e partindo da gagueira, esclarecerei primeiro os vínculos do supereu com o mal-estar na civilização para além de Freud, com Lacan.

 

Gaguejar

A própria ideia de mal-estar na civilização encontra sua origem na imensa decepção imposta pela Primeira Guerra Mundial, que é também um confronto das potências imperialistas pela hegemonia, para aqueles que, como Freud, vislumbraram a obra da civilização como uma promessa de paz possível. Quando publicou seu Malaise dans la culture cerca de quinze anos depois, em 1930, Freud renunciou à paz, mas não à noção de cultura – embora tenha reduzido seu perímetro ao equilíbrio frágil e precário das forças pulsionais sob a pressão do supereu. A repressão pulsional aparece aí como causa conjunta do mal-estar e da civilização – que também pode ser lida da seguinte forma: não há cultura ocidental sem mal-estar, não existe nenhuma cultura que não confronte aqueles e aquelas que ela civiliza com a possibilidade de um ressurgimento da violência, o que viria invalidar o sacrifício consentido para que a cultura triunfe sobre a suposta selvageria. A universalização desse modelo cultural ocidental pode, portanto, atuar como proteção contra essa inquietação sempre latente, como possibilidade de ignorar ativamente a fragilidade da operação sobre a qual ela repousa.

No entanto, essa fragilidade pode ser justamente trazida à tona por esse “pequeno” fenômeno da gagueira. Quando a voz começa a tropeçar nas sílabas, repetindo-as um número incalculável de vezes antes, ocorre uma dupla operação: por um lado, a palavra perde ali sua atividade simbolizadora, pois a repetição da sílaba separa de seu sentido a palavra que não consegue ser dita, de modo que a palavra repete sua ancoragem pulsional na repetição ou mesmo se vê subjugada pelo pulsional; por outro lado, a gagueira revela, em sua ambiguidade, a função do Outro, que é também dupla: ponto de invocação e de endereçamento do sujeito, que lhe permite falar sustentando a linguagem como lei simbólica compartilhável, e, ao mesmo tempo, fiador indetectável dessa lei, o inverso sem sentido dessa imposição de sentido que a linguagem promove. Essa ambiguidade se materializa muito claramente na gagueira: o sentido que se desfaz do lado do falante na repetição de sílabas convoca o interlocutor para uma atividade interpretativa – a palavra deixada em suspenso deve ser completada, o sentido impedido deve ser construído.

Porém, esse exercício de adivinhação do lado do interlocutor pode, obviamente, levar à produção de um sentido diferente daquele projetado pelo locutor, e é aí que está o ponto de vacilação em que o interlocutor encontra sua função de Outro: não há sentido fixo e unívoco, não há garantia da linguagem como lei simbólica na própria linguagem, assim como não há também fora ou acima (não há Outro do Outro). É isso o que a gagueira desnuda e que concerne a todo “falasser”. É, portanto, esse mecanismo fundador que situa o Outro como o lugar impossível do dom significante, como lugar impossível da construção estabilizada do sentido. Ora, este é o paradoxo da questão: é justamente essa expectativa frustrada – que o Outro fale, sem, no entanto, poder falar "realmente", sem dar o sentido de uma vez por todas – o que faz o interlocutor passar ao estatuto de Outro.

A gagueira faz, então, aparecer sintomaticamente esse ponto de fuga da estrutura, que é precisamente aquele que Lacan situava no seminário sobre As Relações de Objeto como sendo a origem do supereu: “O que o sujeito incorpora é (...) algo de análogo ao objeto de necessidade, não na medida em que ele mesmo seja o dom, mas na medida em que ele substitui a falta do dom”.[9] Essa concepção lacaniana do supereu, raramente mobilizada, faz valer essa função ambígua do Outro, que dá o que ele não pode dar sob a forma de um substituto que indica isso que ele compensa, uma ausência estrutural. Há aí então uma espécie de artimanha, pois se trata de produzir uma satisfação pulsional por regressão ao objeto da necessidade no lugar da expectativa de uma ordem completamente diferente, uma expectativa de saber – onde vemos que a concepção lacaniana do supereu procura distinguir-se muito cedo de sua acepção freudiana.

De certa forma, a gagueira busca produzir uma contra-artimanha: gozar repetidamente no registro do pulsional, portanto, na tentativa de obter do Outro esse dom significante, de uma forma bastante específica que consiste em forçar o Outro a pedir para dizer. O dom significante que não existe é invertido em demanda e, assim, dissimulado como tal. "Você vai, finalmente, dizer o que você tem a dizer...?": eis a posição em que a voz gaga encurrala o Outro, obrigando-o a demandar. No entanto, desde seu primeiro seminário, Os Escritos Técnicos de Freud (1953-1954), Lacan[10] havia enfatizado não apenas que o Superego é "nada mais que uma função linguageira", como o seminário sobre As psicoses (1955-1956)[11] permitiu em seguida especificar (em particular graças à análise da voz que interpela o sujeito na alucinação auditiva): trata-se da função do “tu”, aquela da segunda pessoa.

 

Situar o supereu

Essa aparente dialética do dom e da demanda que a gagueira põe em prática permite mascarar a dissimetria fundamental que, de fato, se desenrola aqui entre o “eu” e o “tu”. Ao descartar-se como “eu”, como sujeito da enunciação, a voz gaga faz com que apareça esvaziada a função do “tu” pelo que ela realmente é, uma tentativa de fixar o Outro em um ponto da significação. A situação produzida pela gagueira revela a falha estrutural desse “phishing” ["hameçonnage"] a partir da qual o "eu" busca operar sobre o outro: o que retorna do Outro assim interpelado no "tu" não pode ser outra coisa que uma contra-interpelação, ou um “contra tu”, no qual a demanda se transforma no imperativo ameaçador – “Fale!”. Esse imperativo é ainda mais poderoso por ser sem conteúdo, e remete o sujeito de volta ao seu dilema trazido à tona pela gagueira: falar, mas para dizer o quê? No que diz respeito à fala gaguejante, que não cessa de se interromper, o próprio imperativo do superego é estruturado por sua interrupção: é precisamente sem significação. Ele funciona como um “Tu és…” com conteúdo flutuante.

É isso que volta ao sujeito da enunciação desde esse “tu” que mata, isto é, desde esse “tu” que não é, de fato, uma pessoa, mas uma função, este Outro que é uma espécie de “nós”,[12] como nota Lacan em As psicoses na aula de 13 de junho de 1956.[13] Essa asignificação [asignifiance] do “tu” é precisamente o que faz do supereu um órgão de poder irresistível, que torna o “eu” disponível a qualquer pressão social ou interpelação. Visto a partir do “tu” (superegóico), essa função asignificante [asignifiante] necessária para poder situar o “eu”, o sujeito da enunciação não é mais ele mesmo senão como um(a) outro(a). Isso a voz gaguejante o sabe, a despeito de si mesma, de uma maneira particularmente cruel: a cada vez que ela se faz escutar, sujeito da enunciação e sujeito do enunciado, ela se vê ali imediatamente colocada em conflito – há um dizer e um dito, cuja disjunção não está velada.

Se o "tu" é de fato considerado por Lacan desde seu primeiro seminário como "a própria palavra", o comando "do qual só resta a raiz", a ponto de se tornar "qualquer coisa inexprimível no limite",[14] ele é subitamente identificado como superego a um enunciado discordante, inadmissível, não integrável, que atua como uma instância cega e repetitiva. No final dos anos 1950, Lacan se encaminha para um esclarecimento que dissolve as ambiguidades da concepção freudiana ao distinguir, no seminário A ética da psicanálise,[15] a lei da interiorização da lei – isto é, o supereu – que só ocorre por meio de formas de abolição do sujeito. Ali onde se pode ter absolutamente a sensação de que se vai enlouquecer, como disse Alice Diop em sua entrevista.

Mas antes de chegar a isso, Lacan já terá especificado como a lei internalizada, que é o supereu, é o efeito estrutural da própria lei incompreendida, retornando duas vezes ao caso de um paciente muçulmano – em “A coisa freudiana”[16] e em O eu na teoria de Freud.[17] Esse analisando desenvolveu uma hostilidade marcante em relação à lei corânica, que estipula em sua letra que o ladrão será punido tendo sua mão decepada. O pai do analisante, funcionário público, havia perdido o emprego após uma acusação de roubo, mas não teve a mão cortada. O enunciado do castigo tradicional, em seu horror inadmissível para o filho, foi separado do resto da lei. Isso tem o efeito de preservar tanto a lei quanto o pai, mas se paga por um sintoma que, de alguma forma, restitui uma significação possível para este enunciado em segundo plano que, no entanto, não é menos constrangedor por ser não integrável. É o filho quem sofre de uma câimbra tenaz e que não pode usar sua mão para escrever. É ele, portanto, que se encarrega de situar em algum lugar – no seu próprio corpo –, para tentar neutralizá-la, essa parte obscura e cruel da lei que poupou seu pai, mas que, no entanto, continua, não menos, a existir...

Proponho considerar o exemplo desse paciente muçulmano como constituindo justamente o avesso dos famosos pacientes togoleses, aos quais Lacan se reporta em O avesso da Psicanálise,[18] que haviam trocado seu inconsciente pelo complexo de Édipo do colonizador, de modo que suas infâncias foram retroativamente vividas em “nossas” categorias familiares. Se o cenário freudiano derivou o supereu do declínio do Complexo de Édipo, tornando possível sua imposição onde quer que se exerça a lei da civilização ocidental, a perspectiva lacaniana de um supereu pensado fora do quadro edipiano nos permite considerá-lo o meio pelo qual persistem, no interior do arcabouço cultural ocidental, elementos que contestam aí a hegemonia. Afinal, esse paciente muçulmano de Lacan está de fato estendido no divã da Rue de Lille, mas o que ele testemunha ali por meio de seu sintoma é sua fidelidade (dolorosa, com certeza) ao que suporta a lei e que não é ela.

Poderíamos chegar aqui a levantar a hipótese de que o processo de internalização da lei que é, portanto, homogêneo ao supereu, seria indissociável da produção de um resto, que nos termos lacanianos dos anos 1970 podemos situar como remetendo a uma economia psíquica articulada ao modelo capitalista, tal como podemos vislumbrar a partir da crítica marxista da mais valia? Lacan produz por homonímia o que ele nomeia “mais de gozar”: ou o que é produzido pela própria lei (a necessidade de sua internalização, que não se realiza jamais completamente), mas a excede (em seus efeitos inconscientes que levam o sujeito a gozar “paradoxalmente” de seus sintomas), e que deve, no entanto, ser recuperado pela lei de uma forma ou de outra para que ela mantenha sua potência?

Então, como entender essa asserção (gaguejante?) de Lacan em 10 de março de 1971, no seminário De um discurso que não fosse semblante: "A única coisa de que nunca tratei é do supereu"?.[19] Embora seja bem fácil perceber que essa é de fato uma questão discutida em quase todos os seminários, e isso desde o início – muitas vezes marginalmente, mas mesmo assim… Vejo duas maneiras possíveis de considerar isso: Na primeira, Lacan consideraria que o supereu permanece um conceito freudiano que não pode ser tratado lacanianamente ou do qual ele não terá esgotado as fontes em sua própria conceitualidade (no entanto, é justamente neste mesmo seminário, em 1971, que se reafirma a injunção paradoxal do supereu que está em elaboração desde o seminário A angústia e a primeira aproximação ao objeto a,[20] bem como a reorientação propriamente lacaniana sobre o gozo: "O que o supereu diz é: Goza!”).[21]

A outra possibilidade, que me parece mais interessante, consiste em considerar que o que Lacan está dizendo aqui é de fato que há o intratável no supereu, e que esse intratável tem algo a ver com isso que ele nomeia muito tardiamente “saber absoluto”, isto é, um saber que é “na medida em que está no Real”. Porque o que caracteriza o saber absoluto aos seus olhos, paradoxalmente, é “que ele não fala a todo custo. Ele se cala se ele quer se calar”.[22] É precisamente o que é o real na sua diferença com o simbólico: o que pode se calar ou o que pode não falar e escapar ao regime da significação por posicionar o saber em outro lugar, na ordem do absoluto.

Isso se torna concebível uma vez que a voz foi isolada como objeto a, em 1963, incorporada como a alteridade do que se diz, e assim fazendo ressoar o vazio que é o vazio do Outro, que envia precisamente à ausência do dom significante sobre o qual falei acima. Em outras palavras, se o real fala, é por dizer a verdade sobre o que é o real. Ele diz mesmo somente isso (é isso, o saber absoluto): não apenas que o real é gozo, mas que o real é um imperativo de gozo: Goza!, onde se reconhece a marca do superego que não cessa de trabalhar a disjunção entre saber e poder.[23] Ao mesmo tempo que o real diz o imperativo de gozo, ele não fala necessariamente (é isso também, o saber absoluto): a voz gaguejante apela à palavra do Outro, mas sobretudo faz ressoar seu vazio. O silêncio que aí se configura no vazio (“se calar”) é a outra face do supereu, por conexão com a pulsão de morte (que tem como uma de suas características freudianas poder operar silenciosamente).

É a discordância própria ao supereu lacaniano em sua versão dos anos 1970 de desvincular poder e saber: lá onde isso sabe realmente (absolutamente), isso não fala necessariamente – e o correlato, que indica claramente que o supereu é o suporte real do inconsciente, o lugar mesmo da alienação ao Outro cujas figuras e suas torções o inconsciente desdobra. É que lá onde isso quer falar, isso não pode (o sujeito está sempre mais ou menos gago). Assim, poder-se-ia retomar o vel da alienação subjetiva, tal como Lacan visa desde o Cogito, mas principalmente a partir do supereu, considerado como o pivô de um mal-estar na civilização que eu ousaria dizer que "lacaniza": lá onde tu podes (falar), tu não sabes; lá onde tu sabes, tu não podes (falar).

 

A disjunção entre saber e poder e o mal-estar na cultura

Como podemos ver, Lacan estava, neste momento, em condições de dar outro alcance ao paradoxo produzido por Freud em seu Mal-estar na civilização e à ideia de que a lei moral, pesada demais para o ser humano suportar, é um mal tornado necessário pela pulsão de morte e sua violência muda mas irresistível, que triunfa no supereu (como mostrou o estudo da melancolia), de modo que o remédio participa do mal. Se o caráter sem saída dessa lei moral foi exibido em sua radicalidade por Freud, a disjunção entre saber e poder liberada pela concepção lacaniana de supereu por meio da mobilização dos conceitos de objeto a, real e gozo abre uma outra perspectiva para considerar a especificidade do mal-estar na civilização ocidental.

No verbete "Imperialismo" de Marx pelo Vocabulário de Lacan,[24] co-dirigido por David Pavon-Cuellàr, Livio Boni apresentava a maneira pela qual Lacan distinguia dois regimes de governabilidade na história, a partir dos quais se pode traçar (ainda que um pouco grosseiramente) os contornos e a lógica própria do imperialismo moderno, em que podemos ver essa disjunção em ação e suas consequências na cultura. Por um lado, trata-se da antiga forma do Império (Emporium), que corresponde a uma racionalidade política herdada das antigas metafísicas, nas quais prevalecia a preocupação com o Um como pedra angular da harmonia do mundo (nenhum mal-estar aqui, portanto, mas também nenhum no Ocidente... Esta forma do Império existia paralelamente na China). O saber ideal assume a forma do cálculo racional cujo agente, a antiga figura imperial de um mestre encarnado, é também o fiador, pois ele próprio é o ponto de harmonização última entre contagem e autoridade. Simplificando, nessa configuração, aquele que tem o poder é aquele que sabe contar – mas contar não é acumular.

É a partir desse ponto de diferenciação que se pode vislumbrar, por outro lado, uma forma de Império (Imperium) que possibilitará um exercício de poder de tipo capitalista, não mais baseado em um modo de produção “simples” escravagista que consiste na utilização da força de trabalho dos vencidos, mas sobre um modo "complexo", "indireto" ou "moderno" de produção, mobilizando também a escravidão, mas orientado por uma acumulação baseada na espoliação e indissociável tanto da conquista colonial quanto do estabelecimento de um desenvolvimento desigual. Do lado do Imperium, não é mais necessário saber para ter poder, para estar na posição de mestre (e, portanto, trata-se de uma outra "raça" de mestre que aquela a qual pertencia o mestre antigo), basta ter acumulado, ter um capital. Se o capital se deve a uma contagem rigorosa, a partir da mais-valia que deve ser reintegrada a ele, a lógica da qual ele depende coloca a contagem do lado do poder e não mais do saber. Nessa configuração, o mestre não é mais aquele que sabe, mas aquele que pode, e aquele que pode não precisa necessariamente saber, há outros que estão ali para isso.[25] Sua função de mestre se encontra, portanto, modificada: ele não pode mais se manter como garantidor de uma harmonia, ou do Um, pois ele mesmo produz a disjunção na qual fundamenta sua potência, separando saber e poder.

Em um discurso de encerramento de um colóquio da Escola Freudiana de Paris em outubro de 1967, Lacan profetizou assim os efeitos da segregação produzidos por essa organização imperialista moderna – de uma forma que antecipa melhor a profecia posterior sobre o futuro ‘radiante’ do racismo,[26] no qual os dois estão fundamentalmente ligados:

 

Os homens estão enveredando por uma época que chamamos planetária, na qual se informarão por algo que surge da destruição de uma antiga ordem social, que eu simbolizaria pelo Império, tal como sua sombra perfilou-se por muito tempo numa grande civilização,[27] para ser substituída por algo bem diverso e que de modo algum tem o mesmo sentido – os imperialismos, cuja questão é a seguinte: como fazer para que as massas humanas, fadadas ao mesmo espaço, não apenas geográfico, mas também, ocasionalmente familiar, se mantenham separadas?[28]

 

Há nesta perspectiva um "momento 1967" a esse respeito, e até um "momento outubro de 1967": paralelamente à previsão aqui enunciada de que "até onde se estende o nosso universo, teremos que lidar, e sempre de maneira mais premente, com a segregação".[29] Ele especifica em sua "Proposição de outubro de 1967"[30] o que é esse universo, o nosso, cuja extensão foi assegurada pelo imperialismo capitalista: "Nosso futuro de mercados comuns encontrará seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação”.[31] Se o comum está fundado no mercado, isto é, no princípio da produção de mais-valia, então só dura na medida em que permite a acumulação, quer dizer, no exercício de um poder que implica a espoliação dos "outros" – a quem resta ainda alguma coisa, precisamente o saber sobre essa espoliação (em seu próprio título, é bem isso o que dizem os Estudos Subalternos).

O mal-estar da civilização ocidental, isto é, imperialista, que aqui se esboça é mais radical – sem dúvida também mais desesperador – do que em sua compreensão freudiana: não se trata simplesmente da renúncia às satisfações pulsionais que um indivíduo consente em fazer no interesse geral (e em grande parte hipotético) para diminuir o nível das tensões sociais e até mesmo para evitar a guerra de todos contra todos. Trata-se agora de poder pensar com Lacan, não mais sobre como escaparemos (talvez) da terceira guerra mundial, de um conflito radicalmente destrutivo, mas sobre qual circularidade infernal se torna possível a cultura, mais discretamente destrutiva, da segregação, ou seja, da perspectiva na qual me situo, o nome propriamente lacaniano do mal-estar na civilização.

Por fim, os imperialismos se baseiam na existência de uma instância que assegura a disjunção entre saber e poder, e sua constante renovação – o supereu. Essa disjunção, da qual o supereu alimenta seu próprio poder, impõe o gozo como meio de perdurar silenciosamente. O racismo encontra aí sua função indissociavelmente psíquica e política: o gozo, tornado necessário pela disjunção entre saber e poder, serve assim para dissimular e alimenta, simultaneamente, o processo de uma segregação ramificada que inscreve a contrapartida política desta disjunção nas sociedades racializadas – sei que a raça não existe, mas ainda não posso prescindir dela para garantir meu lugar na cultura imperialista, mesmo que o desconforto seja o preço a pagar...

Voltando finalmente à Alice Diop e ao seu uso intuitivo da gagueira, que tentei sustentar em termos psicanalíticos, gostaria de arriscar uma hipótese que surge dos pontos que acabaram de ser discutidos: quando o racismo se impõe como um "tema cultural" que não pode mais ser evitado em debates públicos, então somente pode ser gaguejado. A gagueira torna-se, assim, o próprio sintoma do mal-estar da civilização ocidental (ocidentada?), ao expor na linguagem sua ancoragem histórica, que é a seguinte: essa disjunção entre saber e poder assegurada pelo supereu no sentido dos imperialismos modernos.

 

Sophie Mendelsohn pratica psicanálise em Paris e publicou vários artigos em revistas, incluindo Critique, Essaim e Psychanalyse. Ela iniciou a criação do Collectif de Pantin, que reúne psicólogos, psicanalistas, psiquiatras, filósofos e antropólogos em torno de questões de raça, a fim de colocar a psicanálise no caminho de um exame aprofundado do enigma do racismo.

 



[1] Sandra Onana, “Alice Diop, visions périphériques”, Libération, 11 de fevereiro, 2022, disponível em: < https://www.liberation.fr/culture/cinema/alice-diop-visions-peripheriques-20220211_MEGDYYF74JEZXOJRUZBEQZIQMI/ >, acesso em 06/04/2022.

[2] Trata-se de uma adaptação livre de um livro sobre os subúrbios escrito no início dos anos 1980 por François Maspero, o grande editor anticolonialista dos anos 1950-1960, que é também autor de Les passagers du Roissy Expres, publicado em 1990.

[3] Octave Mannoni, The decolonization of myself, Race, vol 7, n 4, 1966, pp. 327-335.

[4] Elizabeth Roudinesco, Soi-même comme un roi. Essai sur les dérives identitaristes, Paris, Seuil, 2021. Em português: Elizabeth Roudinesco, O eu soberano: ensaios sobre as derivas indenitárias. Rio de Janeiro: Zahar, 2022.

[5] Essa expressão foi utilizada desde 1964 por um Mannoni crítico da neutralidade ilusória que "começava a aparecer de modo desconcertante, como um privilégio do homem branco e parecia ser uma fonte de dificuldades – quase um sintoma de sua recusa <a dos homens brancos> para compreender certos aspectos da situação.” Octave Mannoni, Le racisme revisité, Paris: Denoël, 1984, p. 32.

[6] Menção ao grupo internacional Ubuntu – Psicanálise e Decolonização.

[7] E agradeço à Andréa Guerra por ter tomado a iniciativa!

[8] Optamos por manter a tradução da expressão clássica freudiana para o português “mal-estar na civilização” e manter a referência à cultura nas demais citações da autora, malgrado toda a discussão entre civilização e cultura que atravessa a tradução da obra freudiana para o português. A autora usa sempre a referência francesa: culture.

[9] Jacques Lacan, O Seminário, livro 4: A relação de objeto (1956-57). Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1995, p. 178.

[10] Id., O Seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud (1953-54). Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1975.

[11] Id., O Seminário, livro 3: As psicoses (1955-56). Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985.

[12] Referência ao pronome francês “on”.

[13] Jacques Lacan, O Seminário, livro 3: As psicoses (1955-56), op. cit.

[14] Id., Le séminaire, Les écrits techniques de Freud (1953-54), Paris: Seuil, 1998, p. 119.

[15] Id., O Seminário, livro 7: A ética da psicanálise (1959-60). Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2008.

[16] Id., “A coisa freudiana”, in: Escritos (pp. 402-437). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

[17] Id., O Seminário, livro 2: O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (1954-55). Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985.

[18] Id., O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1969-70). Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1992.

[19] Id., O seminário, livro 18: De um discurso que não fosse semblante (1971). Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2009, p. 84.

[20] Note-se que, na esteira do seminário sobre A angústia, em 20 de novembro de 1963, ocorreu a única sessão do seminário intitulada "Os Nomes do Pai" (inédita e para uma versão crítica, ver: https://www.linstancelacanienne.com/_files/ugd/463098_9bbe10f5daf44ceb85247843138ec392.pdf ).

O seminário é interrompido pela decisão de Lacan de deixar a Sociedade Francesa de Psicanálise, que havia decidido ratificar a decisão da IPA de excluí-lo da lista de didáticos. No entanto, Lacan desenvolve justamente aí a relação entre o objeto a, a voz e o Superego: “A voz do Outro deve ser considerada como um objeto essencial. Cada analista será chamado a dar-lhe o seu lugar e a acompanhar as suas mais diversas encarnações, tanto no campo da psicose como, no mais extremo do normal, na formação do superego. Localizando a fonte do superego, talvez muitas coisas se tornem mais claras. »

[21] Jacques. Lacan, O seminário, livro 18: De um discurso que não fosse semblante, op. cit., p. 166.

[22] Aula de 8 de fevereiro de 1977, do seminário inédito no Brasil, L’insu que sait de l’unebévue s’aile a mourre. É curioso que Lacan aqui pareça personalizar o superego, ao passo que já em 1958, no seminário As Formações do Inconsciente, denunciara com muita clareza as expressões tendentes a fazer do superego uma pessoa. Mas, no entanto, fez dele um sujeito –  e sem dúvida é assim que as coisas devem ser entendidas aqui: "Funciona no interior do sujeito tal como um sujeito se comporta em relação a outro", porque "uma relação entre os sujeitos nem por isso implica a existência da pessoa”. (Jacques Lacan, O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, p. 302).

[23] Não sabemos como gozar, mas não podemos fazer de outra maneira senão gozando.

[24] Christina Soto van der Plas et al (orgs). The Marx through Lacan Vocabulary: A Compass for Libidinal and Political Economies . Londres: Routledge, 2022.

[25] É o que Lacan torna visível em sua teoria dos quatro discursos ao distinguir o discurso do mestre daquele do acadêmico (cujo horizonte é o progresso da ciência).

[26] Últimas palavras do seminário …Ou pire, junho de 1972: Jacques Lacan, Le Seminaire, livre XIX: ou pire... (1971-72). Paris: Seuil, 2011.

[27] A civilização chinesa.

[28] Jacque. Lacan, “Alocução sobre as psicoses na infância”, in: Outros Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2003, p. 360-361.

[29] Ibid., p. 360.

[30] Essa proposta consistia justamente em tentar impedir que a instituição psicanalítica reproduzisse formas imperialistas de poder em seu próprio funcionamento. Uma retrospectiva de mais de cinquenta anos deve permitir analisar com bastante precisão as razões de seu fracasso...…

[31] Jacques Lacan, “Proposição de 9 de Outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”, in: Outros escritos (pp. 248-264). Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, p. 263.