Apresentação das Fundações de neuroses, delírios e perversões [1]
Luiz Marcos da Silva Filho
Como sempre, este discurso começa onde o Ato cessa. Isso funciona em toda parte, segundo repetições polimorfas históricas de neuroses, delírios e perversões. Não à toa, tantos fundadores (não importa por ora se reais, simbólicos, mitológicos ou imaginários) foram sádicos ou generosos o bastante para nos deixar enormidades de heranças sem nenhum testamento. Ou seria possível transmutar a transmutação da sublimação em “sublime-Ação”?[2] Aqui, a aposta artística de vida ou morte é de afirmação. Por isso, que erro novamente ter dito o isso, o erro mais acertado de Nietzsche para implodir o sujeito, equívoco fundante da contrafilosofia ainda insuperável de nosso tempo,[3] assim como da psicanálise, da genealogia, da crítica da cultura, da autoetnografia de nós mesmos, da estética da existência..., ainda que ele mesmo tenha sido o primeiro a dizer o quanto há de interpretação e gramática nisso. Seja como for, é ainda disso de que esta obra trata, com o propósito de descolonizar[4] o pensamento. Eis por que o projeto é o de reconstruir para melhor desconstruir fundações do sujeito, da subjetividade, da psicanálise, da castração, da alteridade, da imputabilidade, do desejo como falta, do capitalismo, das prisões, dos muros e das bordas. Trata-se em primeiro plano de “fundações” e não de “redes” ou “tramas” ou “rizoma” porque de facto neuroses, delírios e perversões guardam “fundações”, ao passo que do ponto de vista mais abrangente, dinâmico e poroso das “redes”, isso passa e não haveria nada disso de que esta obra ainda trata. O problema é que isso e o capitalismo insistem em não passar. Assim, falar em estruturas clínicas da cultura só guarda sentido a partir de condições do sentido, de fundações ou funções de castração, não obstante se trate aqui também, mas em segundo plano, de “redes” ou “tramas” ou imanências indomesticadas (entre as quais devires-animais) como horizonte imemorial – aquém e além – das estruturas e superestruturas que somos e para o qual os experimentos aqui presentes pretendem nos lançar, mas não sem antes afirmar que o lançamento seria contraproducente e em direção ao abismo mesmo da Falta e do Capital sem a assunção criativa (e com uma pitada de perversão sem reversão do Mesmo) dos mais graves semblantes de nossa cultura, do contrário seria como pretender despir-se de uma armadura sem atinar que sem ela um corpo com órgãos milenarmente gestado como seu suporte ainda permanece brutal e falicamente armado[5] (tal qual alguns tristes fins de análise como conformação dinâmica entre cadeia de significantes subjetivos e cadeia de significantes enfeitiçados). Aliás, a virtude maior da Arqueologia do sujeito, de Alain de Libera (assim como por outras vias da obra do medievalista Giorgio Agamben), foi haver descortinado e (re)construído arquivos milenares, principalmente antigos e medievais, sem os quais esclarecemos pouco do que se passa na Modernidade e na Contemporaneidade, porque as raízes da subjetividade e das chamadas ciências dos homens se encontram lá e provam que “a teologia está em toda parte, de um extremo a outro da história e da pré-história do sujeito” , assim como – acrescente-se com ênfase o que Libera perde de vista – da ficção a-histórica do desejo como Falta[6] e da superestrutura do capitalismo.[7] De certo modo, como de costume atirando onde via e acertando com precisão onde não via, Nietzsche guardava intuição disso ao desconcertar o humanismo de Feuerbach com a afirmação de que a efetiva morte de Deus coincide com e guarda como condição a morte do homem, mesmo havendo ignorado abissalmente arquivos tardo-antigos e medievais[8] (e, ademais, as fundações da diferença no Sofista, de Platão, tornando ilusoriamente fácil desconstruir o platonismo sem uma “auscultação” sua mais demorada e provisoriamente generosa). Aliás, diante da profusa recepção do Sofista nos séculos XX e XXI, é no mínimo curioso pensar por que esse documento platônico maior, em que jazem as bases mais profundas do simbólico, da alteridade e do parricídio no pensamento ocidental, permaneceu e permanece ainda esquecido na história da psicanálise. Como não enxergar a potência para a psicanálise da questão de que lugar o Estrangeiro fala para promulgar as bordas do campo simbólico? Para instituir quais gêneros têm relação sexual (ou symplokê) com quais e quais não têm? Fundação ou Parricídio de tamanha enormidade só podia mesmo ser de iniciativa de um estrangeiro. Afinal, o lugar de onde se dá a instituição do simbólico e seu amuro em relação ao Real, ao imaginário e à sofística é não a pessoa ou a impessoalidade do Estrangeiro e sim o Lógos. Qual Lógos? Um orthòs lógos estranho à cidade, ao social e ao histórico, o Discurso nos limites da lógica simbólica predicativa que funde pensar e julgar, porém com fundações nas relações (sexuais?) eidéticas antepredicativas. Entretanto, o projeto aqui é ainda obviamente nietzschiano, segundo o que Nietzsche melhor pensou sobre o artista como um perverso bem-sucedido e não como um Dioniso orgíaco (como em sua juventude) e o tornou sua vida pela vontade de Arte criativa daquele “grande estilo” que nasce quando o belo triunfa sobre o monstruoso, tal qual o estilo de um Horácio ou de um Goethe reconsiderado em seus últimos escritos como quem desafia as regras por havê-las dominado. É assim que estimo primordialmente como nietzschiano antes que foucaultiano e mais genealógico do que arqueológico um projeto de “(re)construir o ‘sistema de pensamento’ que hoje todos tentam desconstruir [muitas vezes sem método, sem vagar, sem paciência, sem disciplina, sem trabalho de arquivo, em suma, sem arte e como uma gozação que nada contraefetua], quando não o consideram, por força de rumor, como desde já, e ‘évidemment’, desconstruído”.[9] Com tudo, em diferença radical em relação à situação eurocêntrica do Libera, a nossa Grécia são as metafísicas ameríndias, por isso a crítica das Fundações não poderia dar-se aqui sem relação simétrica também com pensamentos “selvagens” intrinsecamente não-proposicionais ameríndios. Portanto, o programa é a um só tempo de reconstrução e desconstrução de teorias da fundação a partir da hipótese geral de que No Princípio era não a Palavra neurótica e sim a Perversão (hipótese mal dita em Freud), a Fantasiação e o Delírio. Ou ainda, o programa é apresentar uma outra história do homem como um não-ser mitológico a partir da hipótese heurística interdisciplinar acima de contraefetuação do Gênesis, do prólogo de João, de passagens exemplares dos Antigo e Novo Testamentos a respeito da “feroz ignorância de YHWH” (com destaque para a sua invectiva no livro profético de Oseias à luz de Moisés e o monoteísmo e o Seminário 17), da tradicional História da Filosofia (com destaque para as fundações do parricídio, da alteridade, do simbólico, da civilidade e da ética no Sofista, n’A cidade de Deus, na Suma de teologia, nos Discorsi), da Psicanálise freudo-lacaniana, reconstruídos o quanto possível a partir de suas imanências tanto textuais como contextuais e como Fundações de jurisdições tirânicas instituídas por meio de abstração criativa de racionalidades, moralidades e realidades apartadas do Real – o real não sinistro como no idealismo pulsional lacaniano e sim o Real como aquele “lugar sem onde” tal qual o sertão ou as ilhas utópicas do “poeta acima da guerra e do ódio entre os homens”, em que só há híbridos, multinaturalismo interespecífico e devires-animais, não-separabilidade da natureza e da cultura, do sujeito e do objeto, do homem e do mundo, do conhecer e do agir, do pensar e do sentir. Porém, tudo isso é expressão do trabalho de resistência que desencontro no interior da institucionalidade universitária brasileira para descolonizar o pensamento a partir da Filosofia, porque se eu tivesse condições e principalmente virtuose poética para expressão mais livre e criativa das pulsões, eis a forma do convite à travessia que eu desejaria mesmo fazer:
No lógar dos palácios desertos e em ruínas
Á beira do mar,
Leiamos, sorrindo, os segredos das sinas
De quem sabe amar.
Qualquer que elle seja, o destino d’aquelles
Que o amor levou
Para a sombra, ou na luz se fez a sombra d’elles,
Qualquer fôsse o vôo.
Por certo elles fôram mais reaes e felizes.
Luiz Marcos da Silva Filho é professor e pesquisador de História de Filosofia Patrística e Medieval dos cursos de graduação e pós-graduação em Filosofia da PUC-SP. Possui graduação, mestrado, doutorado em Filosofia pela USP (com estágio na Universidade de Tours, França) e pós-doutorado pela UFSCar. É líder do Grupo de Pesquisa de Filosofia Patrística, Medieval Latina e em Árabe da PUC-SP/CNPq (Falsafa), membro do Centro de Estudos de Filosofia Patrística e Medieval de São Paulo (Cepame), da Société Internationale pour l’Étude de la Philosophie Médiévale (SIEPM) e coordena junto com o psicanalista Daniel Fujisaka o Grupo de Leitura de Lacan, no momento investigando a ética da psicanálise.
[1] Trata-se do título do livro em gestação e do projeto homônimo de que dou notícias aqui, para e sobre o qual convido a quem possa interessar a participar, colaborar e dialogar. Meu contato: lmarcosfilho@gmail.com
[2] Cf. J. P. Schiavon, P. P. Pelbart, “Subjetividade literária”. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, v 28, n 3, 2020, pP. 38-46. DOI: https://doi.org/10.1590/1809-44142020003012
[3] Juntamente com o marxismo, conforme a máxima sartriana, não à toa reunidos (Nietzsche e Marx, quem diria!?) na obra de Deleuze/Guattari e aqui.
[4] A ssim mesmo com “s” sem galicismo, conforme sugestão de Pedro Ambra em “Jogar fora o saber com a agua do estranho”. Disponível em: https://www.n-1edicoes.org/jogar-fora-o-saber-com-a-agua-do-estranho . Acesso em 27/03/2022.
[5] Pretendi desenvolver filosófica e poeticamente o problema sob a rubrica de uma arte da fantasmatação em L. M. da Silva Filho, “A graça da Fatalidade”. Ipseitas, v 6, n 1, pp. 422-442, 2020. Disponível em: http://www.revistaipseitas.ufscar.br/index.php/ipseitas/article/view/393 . Acesso em 28/03/2022.
[6] Cf. L. M. da Silva Filho, “Ontologia, linguagem e história em Agostinho: contradição e sexualidade n’A cidade de Deus”. Dissertatio, volume suplementar 10, 2020, pp. 243-270. Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/dissertatio/article/view/20221 . Acesso em 23/02/2022;
L. M. da Silva Filho, Como ler Santo Agostinho: terapia da alma e felicidade. São Paulo: Paulus, 2021 (especialmente “À guisa de introdução”, pp. 9-41, em que trato das fundações imaginárias do Ego);
L. M. da Silva Filho,. Filosofia Política em Agostinho: estudos sobre A cidade de Deus. São Paulo: Almedina/Ed. 70, 2022 (no prelo, a sair até junho de 2022), especialmente o Capítulo IV “Identidade e contradição da vontade: pecado, paixões, libido e gozo”.
[7] Cf. L. M. da Silva Filho, da. “A recepção de Agostinho em ‘As confissões da carne’, de Foucault”. Discurso, 51 (2), 2021, pp. 91-112. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/discurso/article/view/193763 . Acesso em 27/03/2022.
[8] Cf. meus últimos trabalhos sobre Tomás de Aquino, também animados pelo projeto de esclarecer o quanto de fundamentos mítico-teológicos medievais há em certo antropologismo moderno: L. M. da Silva Filho, “Fundamento do universal no singular em Tomás de Aquino: natureza comum, similitude e/ou ideia?”. Doispontos:, v 18, v 1, 2021, p. 144-169. DOI: http://dx.doi.org/10.5380/dp.v18i1.78974 ;
L. M. da Silva Filho, “Intelecções divina e humana em Tomás de Aquino (com notas sobre Agostinho e Kant)”, in Cassiano Terra Rodrigues; Luiz Marcos da Silva Filho (orgs.). Liber Amicorum em homenagem a Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento (título provisório). Fundação Fausto Castilho (No prelo). Cf. também minha apresentação intitulada “Bases mitológicas da harmonia essencial entre ser, pensar e dizer”, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=EoObWCSMLVE . Acesso em 28/03/2022.
[9] Alain de Libera, Arqueologia do sujeito, São Paulo: Editora Unifesp, 2013, p. 28 (Colchetes meus).