Antirracismos cotidianos
Marcelo Souza
- Menina, o mundo, a vida, tudo está aí! Nossa gente não tem conseguido quase nada. Todos aqueles que morreram sem se realizar, todos os negros escravizados de ontem, os supostamente livres de hoje, se libertam na vida de cada um de nós, que consegue viver, que consegue se realizar. A sua vida, menina, não pode ser só sua. Muitos vão se libertar, vão se realizar por meio de você. Os gemidos estão sempre presentes. É preciso ter os ouvidos, os olhos e o coração abertos.[1]
Essa
pequena citação foi extraída do livro
Becos
da Memória
, de Conceição Evaristo. Trata-se, no contexto do romance, de uma
admoestação que tio Tatão dirige a Maria Nova quando ela se encontra
desalentada diante dos últimos movimentos da vida de negra Filó Gazogênia. A
magreza da velha tísica, a magreza do seu quarto, a magreza da sua vida,
evidenciavam para a garota a repetição do desamparo, do abandono, da miséria a
que estavam expostos todos aqueles que eram como ela – negros e favelados – e
que, crianças, adultos ou velhos, pouco importava a idade, sofriam no corpo as
marcas duradouras da história colonial e escravagista do Brasil. A advertência
feita por tio Tatão, na ocasião, servia não apenas para dispersar a garota de
suas reflexões lúgubres sobre o que também anunciava ser o seu destino provável,
como também servia, sobretudo, para lançá-la em direção à luta, à esperança num
devir diferente, à responsabilidade que seu corpo e sua batalha carregavam em
relação ao futuro de um povo: o povo negro!
Quando li esse pequeno trecho do livro, estava também tomado pelo impacto do conjunto de reflexões e práticas que projetos, como o Movimento Ocupação Psicanalítica [2] , têm suscitado em mim e em um sem número de psicanalistas e psicólogos espalhados pelas diversas regiões desse país de dimensões continentais, o Brasil. Afinal, a admoestação de tio Tatão, se deslocada de seu contexto de origem, pode perfeitamente servir para nossa ainda jovem ciência – a ‘psicanálise’ -, e por conseguinte, para toda e todo psicanalista brasileira(o): “A sua vida, menina, não pode ser só sua! Muitos vão se realizar por meio de você! Os gemidos estão sempre presentes! É preciso ter os ouvidos, os olhos e o coração abertos!”
...
A
psicanálise, desde seu advento no mundo moderno, tem um compromisso ético
inalienável: o de acolher e escutar as expressões do sofrimento lá onde um
certo discurso tradicional e hegemônico não apenas não as ouve, como também não
as reconhece como verdadeiras. Sua aliança, portanto, não é com qualquer dogma
teórico, filiação institucional ou estandardização da prática clínica, mas com
a verdade das formas de constituição do mal-estar, do sofrimento e do sintoma,
que são, todos eles, dependentes de modos específicos de enlaçamento do sujeito
com o campo do Outro.
[3]
O
discurso hegemônico sobre o racismo no Brasil, esse que constitui nossos modos
prevalentes de sociabilidade, é, nas palavras de Munanga,
[4]
um
“crime perfeito”. Isso acontece porque sua origem e suas consequências
devastadoras são escondidas e camufladas por trás de estratégias discursivas e
ideológicas bastante eficientes entre nós, como são os mitos da democracia
racial, da cordialidade natural do nosso povo e o da nossa dupla mestiçagem – a
mestiçagem biológica, que passa pela miscigenação da nossa população, e a
mestiçagem cultural, que passa pelo nosso tão exaltado sincretismo. O
silenciamento e a denegação do racismo brasileiro não só o torna mais sutil e
mais difuso em nosso território, como também tende a desestabilizar qualquer
estratégia política que vise enfrentá-lo diretamente. Nesse sentido, ele pode
ser considerado como mais sofisticado e ainda mais perverso do que o racismo
observado entre outros povos do mundo.
A
psicanálise brasileira, em grande medida, seja nas suas reflexões teóricas,
seja no delineamento de suas estratégias de tratamento, refletiu essa mesma
denegação do racismo estrutural vigente por aqui. Ainda que importantes expoentes da psicanálise –
como Virgínia Bicudo,[5]
Neusa Santos Souza,[6] Lélia
Gonzalez,[7]
Isildinha Nogueira,[8] etc. –
tenham se ocupado da importância central das consequências sociais e psíquicas advindas
do racismo, fazendo desse tema um objeto incontornável de suas pesquisas, essas
autoras, não obstante a força e potência de suas obras, permaneceram por longo
tempo silenciadas e/ou excluídas dos principais espaços de discussão e formação
de psicanalistas no Brasil.
“Sua
vida, menina, não pode ser só sua!” – alerta-nos tio Titão! A psicanálise brasileira,
essa ciência menina, precisa revisitar parte de seu complexo processo histórico
para encarar a verdade do que ela insistiu em não reconhecer e em não acolher.
As marcas do racismo no conjunto da sociedade brasileira, as diferentes
dimensões da violência que ele promove, os impactos que ele cotidianamente gera
na saúde mental, as ressonâncias psíquicas que ele produz em pessoas negras e
em pessoas brancas, precisam ser enfrentadas urgentemente e com franqueza.[9]
No
seu campo conceitual, a psicanálise precisa se indagar sobre os impactos do
racismo na subjetividade, sobre os efeitos que o processo alienante da
colonização produz sobre os corpos pretos e brancos, sobre as consequências
deletérias da assunção de um ideal de branquitude que age tanto reforçando o
pacto narcísico das pessoas brancas quanto subjugando e desumanizando tudo que
diz respeito ao povo negro: sua cor de pele, seu cabelo, os traços do seu
corpo, sua cultura, as expressões da sua fé, etc.
No seu campo clínico, a psicanálise precisa decididamente saber nomear os sofrimentos advindos do racismo, uma vez que a nomeação tem a função performática de desvelar uma realidade que tende a permanecer no escuro quando falta a palavra verdadeira para descrevê-la. [10] Ela também precisa, ao estar avisada da realidade traumática do racismo, fazer cessar os movimentos inerciais de violência racial, que com frequência são clinicamente perpetuados quando não são escutados e não são reconhecidos pelo analista. Ela deve, enfim, saber desmontar a dimensão entrópica do gozo presente no discurso racista, autorizando uma operação que interfira topologicamente nas dimensões coletiva e singular dos sofrimentos que ele engendra.
Na
sua dimensão política, finalmente, a psicanálise deve apostar em saídas
coletivas, ou seja, em articulações interprofissionais que sejam capazes de
desarmar as diferentes facetas que constituem a estrutura do racismo. Apostar no
engendramento e/ou fortalecimento de espaços de representação e de coletivização
das experiências, e no forçamento para a abertura de espaços institucionais que
visem a dinâmica de sua desconstrução.
...
“Os
gemidos estão sempre presentes. É preciso ter os ouvidos, os olhos e o coração
abertos”! O Ocupação Psicanalítica tem aceitado esse convite de tio Titão e o
acolhido como a um imperativo. É bom destacar que não é fácil retirar dos olhos as traves que insistem em manter
escondida uma realidade paradoxalmente escancarada. Não é fácil escutar o que
desestabiliza os modos prevalentes de constituição de poder e saber presentes em
nossa cultura e que interferem diretamente em nosso labor clínico. Não é fácil,
enfim, abrir o coração para aquilo que é capaz de fazer erodir a estrutura,
anunciando a possibilidade de um mundo que ainda não existe.
Mas é isso que a psicanálise brasileira precisa ser e é isso que esse coletivo tenta produzir, ao lado de tantos outros num Brasil plural que se descobre sob a lente do ato analítico: um discurso e uma prática engajados na luta antirracista e na construção de um país onde todas, todos e todes possam ter garantidos seus direitos à cidadania e seus direitos de sonhar.
Marcelo Fonseca Gomes de Souza - Professor do curso de Psicologia da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e membro do Ocupação Psicanalítica.
[1] Conceição Evaristo , Becos da Memória . Rio de Janeiro: Palas, 2017, p. 111.
[2] O Movimento Ocupação Psicanalítica: por uma clínica antirracista e decolonial acontece em quatro estados (MG, ES, RJ, BA), através de três frentes (clínica, pesquisa e transmissão), construindo fundamentos teóricos e clínicos para uma clínica de borda orientada pela psicanálise no enfrentamento ao racismo à brasileira.
[3] Christian Dunker, Mal-estar, sofrimento e sintoma. São Paulo: Boitempo, 2015.
[4] Kanbengele Munanga, As ambiguidades do racismo à brasileira. Em: N. M . Kon, M. L. Silva, & C., C. Abud, (orgs.). O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise . São Paulo: Perspectiva, 2017 (p. 33-44).
[5] Virgínia Leone Bicudo, Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo . Marcos Chor Maio (Org.). São Paulo: Sociologia e Política, 2010.
[6] Neusa Santos Souza, Tornar-se negro ou As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão socia l. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.
[7] Lélia Gonzalez, Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos . Flávia Rios & Márcia Lima (orgs.) Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
[8] Isildinha Batista Nogueira, A cor do inconsciente: significações do corpo negro . São Paulo: Editora Perspectiva, 2021.
[9] Andréa M. C. Guerra & Rodrigo Goes e Lima (orgs.). A psicanálise em elipse decolonial. São Paulo: n-1, 2021.
[10] Ian Hacking, Making Up People. In: Historical Ontology. Cambridge: Harvard University Press, 2002, p. 99-114.