Ação (clínica) descolonizada do dinheiro, implicações

           Tales Ab’Sáber

 

...a grande muralha construída para separar o valor das vidas do valor do dinheiro. David Graeber

 

É uma marca distintiva forte das sociedades de expansão permanente da economia, tecno-industriais, competitivas, da vida social da mercadoria e seu mercado de massas, de famílias burguesas, proprietárias, e pequenos burguesas disponíveis como máquinas de produção e de reprodução, com vida de distinção e de privilégios políticos permanentes, de classe e, com elas, de raça – modalidades culturais de capital, como acentuou Pierre Bourdieu – entender a onipresença do dinheiro em sua vida como natureza, dimensão transparente da vida social.

Como o ar que se respira, o sol que nos aquece ou deixa o dia cinza, o clima que nos envolve, o trabalho social necessário de todo dia, o cuidado da casa e da família e as imagens mercadorias que nos cercam como enxame, nos modulando a vida, que festejamos sem pensar, o dinheiro é peça social, cultural, que se deseja inteiramente comum, relativamente simples, vida corrente, deste ponto de vista, coisa universal, constante, coisa prosaica, mesmo que a mais desejada e núcleo da dor no mundo... É do seu programa ser a mais leve coisa na fantasia, mediador e causa de desejo, como as coisas da vida que simplesmente sempre estiveram lá. De fato, tão leve, e tão envenenada, como a própria estrutura do desejo.

Sempre, aqui, quer dizer exatamente isso: incorporado à mecânica e à gramática geral e universal da vida e do cotidiano, deste tipo de vida e de mundo, não há pergunta alguma na cultura sobre seu significado. Correspondente a todas as coisas possíveis, não deve haver dúvida sobre o seu sentido. Ele é apenas como tudo o que pode comprar. Algo, por exemplo, para tentarmos uma aproximação, sem o prejuízo da metáfora, como o sol, ou até a consciência desperta, contínua, meio para que se chegue mesmo a se sentir que se está vivo. Sol, consciência e dinheiro..., elementos necessários – ontológicos? –  de quem vive em mundo assim.

De fato, o dinheiro representa, para o mundo que é o seu, a extensão material, socialmente organizada, de nossas potências. Potências marcadas socialmente, através dele, como privilégios de acesso e de brilho na escala do fetiche, o controle de valor da vida da cultura, ou, na estrutura dos direitos, avaliação do todo para cada um e cada lugar na sociedade de classes, e de raças apontadas no mesmo jogo – na sociedade de classes pós-colonial – para a vida total de todos e para a reprodução dessa própria sociedade e seu Capital.

A lógica do dinheiro é simples, quando pensada em termos absolutos no mundo da vida, como seu valor de face deseja: sem dinheiro, nada feito, mas, com dinheiro, a vida e os valores se abrem então todos à sua frente. É assim que ele deve aparecer no mundo da vida, imensa ilusão, socialmente constituída. Isso no momento avançado de internacionalização do trabalho produtivo e de explosão, tardia, de produtividade das coisas, para os homens que, dentro ou fora do dinheiro, e do acesso a elas, as desejam como o único parâmetro concebível para a própria vida.  É assim que o valor de face, a face luminosa, iluminista, do mundo total do dinheiro, quando tornado simples em seu próprio desejo, poder, da mercantilização da vida, expressa a sua eleição natural, por esse objeto vazio e sem caráter. O dinheiro, que não é um objeto, nem uma coisa, mas um meio, ligado a tudo como é e a ainda mais. Um meio de produção, de reprodução e de destruição social. Há até uma forte política contemporânea reacionária para a simples aceitação deste real, pois, quando a natureza liberal da vida sobre o dinheiro falha, surge o elogio daquilo que é poder, a começar pelo dinheiro, fascista.

O dinheiro, essa coisa potência linguagem, mínima como uma informação,  máxima como agenciamento subjetivo, o mundo marcado como um número, que dá a ilusão mesma de que o número é que dá acesso ao mundo, e que, quase irrelevante enquanto extensão e matéria – como a droga... – pode até desparecer em um bit informacional em um banco digital mundial qualquer. Apenas notação de poder em sociedade de classes e coisas à venda. Enigma mundano que deve aparecer no mundo, da perspectiva do poder, como um produtor de vida, normal. Isso, quando sabemos, em longa tradição que sabe, ao menos desde Marx e até David Kopenawa – mas ainda  infinitamente mais, se sabe nos corpos dos milhões de escravizados por séculos por dinheiro, dos humilhados, doentes  e massacrados da indústria moderna por dinheiro, dos precarizados exaustos de todo mundo de agora por dinheiro, dos alienados em uma imbecilidade esplendorosa por dinheiro, dos excluídos do mercado e de todas as realidades sociais e ecologias alternativas, de não Estado, dizia Pierre Clastres, e de não dinheiro podemos dizer, modos de existência eliminados com sistema em todo tempo da modernidade e até o imediato agora – que o mesmo dinheiro é meio permanente da destruição, de mundos, e, hoje finalmente todos sabemos, do mundo.

 

Por isso, um poeta, consciente das coisas do poder, como dinheiro, como subjetivação mais radical, o descreveu em seu princípio fundamental de redução: de chama comum da vida, de excitação maior e geral do desejo e, sendo como é, de coincidente com a melancolia e com a morte, sempre bem presentes, mas sempre excluídas de sua conta. Bertold Brecht:



Canção do efeito vivificador do dinheiro

 

I

 

O dinheiro vale pouco nesta terra

E apesar disso, quando ele falta, ela é fria

E, de repente, ela pode tornar-se muito

hospitaleira, através do poder do dinheiro.

Pois tudo era só reclamações

Agora tudo é envolto em névoa dourada.

Aquilo que esfriou, se aquece.

Cada um possui aquilo de que precisa!

O horizonte torna-se rosa.

Olhe pra cima: a chaminé solta fumaça!

Sim, tudo parece lá agora bem diferente...

O coração bate intensamente. O olhar vai além.

Farta é a refeição. As roupas vão bem.

E o homem é agora um outro homem.

 

II

Ah, eles seguem todos pelo falso caminho

Os que acreditam que no dinheiro nada há.

O que era fecundo torna-se estéril

Quando se sela a boa corrente.

Cada um clama por algo e o apanha, onde é possível obtê-lo.

Pois o pior ainda não veio.

Quem no momento não tem fome, se aguenta.

Agora tudo é sem coração e sem amor.

Pai, mãe, irmão; todos se estapeiam!

Veja a chaminé, ela não solta mais fumaça!

Por toda parte um ar pesado, que não gostamos nem um pouco.

Tudo repleto de ódio e de invejosos.

Ninguém quer mais ser cavalo, só cavaleiros!

E o mundo é um mundo frio.

 

III

Assim é também com todos os bons e grandes

Definha-se depressa neste mundo

Pois com barriga vazia e pés descalços

Não se é grande.

Não se quer o bem, mas o dinheiro.

E se é bafejado pelo desalento.

Mas quando o bem possui algum dinheiro

Ele tem aquilo de que necessita para ser bom.

Quem já se adaptou ao crime

Olhe para cima: a chaminé solta fumaça!

Sim, então se acredita novamente no gênero humano.

O homem é nobre, bom e assim por diante.

A consciência se eleva. Ela estava enfraquecida.

O coração fica mais firme. O olhar torna-se mais amplo.

Se reconhece o que é cavalo e o que é cavaleiro.

E só então a justiça torna-se novamente justiça. 

 
                                                                                                                                (Tradução Leopoldo Waizbort)

 

Deste modo, o entendimento do dinheiro no mundo, da transparência, vitalidade, vida comum, de quem já se adaptou ao crime, ao grande terror do poder de decisão sobre as vidas e o trabalho, o destino dos pobres e da natureza, de todos os colonizados para o capitalismo colonial de longa duração, ou eterno, de todos aqueles filhos de Cain, segundo Baudelaire, é a estrutura mesma de uma grande e fundamental recusa, como dizia Freud sobre este tipo de movimento/sujeito do sentido. Confundido com a própria vida, o dinheiro não aparece com uma forma produtiva humana de tipo recalcamento, apagamento, sobre o que significa na vida social, mas uma real recusa sobre o seu significado mais amplo: cúmplices,  habitamos permanentemente toda a destruição do mundo do dinheiro, basta sair na rua, da grana que ergue e destrói coisas belas, cujos efeitos vemos todo o tempo. Mas, noutra direção, o dinheiro acontece em uma verdadeira recusa social excitada, com sua implicada cisão do sujeito e da vida, entre um campo das possibilidades, que a mercadoria, e só ela, insiste em serem infinitas, experiência comprada e extorquida à vida na fantasia da sua posse, e sua sombra desconhecida presente, o próprio horror do cultivo permanente da morte social em vida. É aquela parte excitada que se destaca nos sonhos, segundo Freud, apagando o que importa ao seu redor, que, no entanto, é bem visível.

Cisão não imaginária, mas simbólica forte, fundada diretamente sobre o poder político, da guerra direta policial, ordenadora real da vida das classes – por exemplo em 1848 e 1871 na França, e, por exemplo, em 1964 no Brasil, ou nos massacres permanentes de jovens negros de agora no Brasil –; e sobre o extermínio colonial contínuo secular, da guerra de Europa e de EUA contra todo o mundo, de uma classe mundial transnacional de acumuladores e de circuladores de dinheiro sobre a divida impagável de todas as demais formas de vida, classes inventadas, raças inventadas e a própria terra inventada, cindida, objetificada e tratada como cálculo e ganho. Embora se diga que não, o dinheiro é a base dos direitos, e de sua recusa, como disse Brecht.

O dinheiro como cisão social ativa também significa isso: ruína das demais existências, tornadas objeto nesta ordem permanente de cisões encantadas, como produção. De destruição e de alienação. Contudo, destruição e alienação também celebradas, por fim, como a vida mais comum, a vida como ela é, de quem teve um pouco de acesso ao dinheiro, não é sua vítima. Aquele que, subjetivando-se deste modo, teve acesso à imagem permanentemente propagandeada da deidade proteica dos donos do dinheiro no mundo, imagem mundial, porque o dinheiro é, de fato, economia mundo, o núcleo mais intenso da fogueira do fetiche, banalizado: a escala de valores de classe na cultura dos imbecis, o identitarismo burguês como predomínio, de toda decisão e poder sobre tudo o mais, sobre as vidas do trabalho, o desejo das massas e o destino da natureza.

Noutras palavras, enquanto uns morrem de extermínio de acumulação primitiva colonial – índios do Brasil, por exemplo, e escravizados dos século de ascensão global do capital mercantil colonial... – e outros de exclusão administrada ou de extermínio dos planos mercantis da vida e seus circuitos de valores, com sua política necessária do encarceramento em massa; outros passam a celebrar com todas as fibras, músculos e cérebro, o seu acesso ao shopping; enquanto outros se dispõe a tudo como analistas simbólicos do dinheiro, trabalhando em sua própria reprodução, e por isso podem mais; e outros, pouquíssimos, vencedores segundo os americanos, brincam de torrar o dinheiro mundial, e todo o sofrimento nele impresso, em foguetes particulares, enquanto calculam e decidem, como Poseidon, as novas ondas ou maremotos do dinheiro sobre o mundo, ondas que varrem a terra, dissolvem realidades e sugam as oportunidades para o seu dinheiro. Assim se estratificam a exclusão e a inclusão, a vida e a morte, os níveis de racialização, articulados a escalas de classe e a decisão sempre concentrada e totalitária, prerrogativa do dinheiro, sobre a vida do trabalho. A ordem comum da vida do dinheiro entre nós sempre foi necropolítica.

Ou, numa descrição clássica, da escala de poderes e potencias sociais relativas à vida do dinheiro:

 

A forma pela qual a propriedade material é distribuída entre várias pessoas, que competem no mercado com a finalidade de troca, cria, em si, oportunidades de vida, o que constitui um fato econômico bastante elementar. Segundo a lei da utilidade marginal, esse modo de distribuição exclui os não-proprietários da competição pelos bens muito desejados; favorece os proprietários e, na verdade, lhes dá o monopólio para a aquisição desses bens.[1]

 

E o bem mais desejado hoje, pelo que dispõem dele e ele nada vale, na nova ordem global de valores, é o trabalho, que não pode mais ser vendido.

Aqui, na dinâmica necessária de inclusão e exclusão que move o mundo no mercado, poderíamos já situar até a psicanálise, e seus fetichismos cuidadosamente construídos em sociedade de proprietários, até mesmo dos proprietários da ideia de psicanálise no mundo, de psicanalistas, sociedades de psicanálise e seus próprios pacientes, proprietários ricos, que podem pagar por ela. A psicanálise de fato se desenha socialmente como muito sofisticada e concebida como um bem raro e de luxo, como um daqueles bens muito desejados que organizam e justificam a exclusão. Ela se desenha socialmente, em grande parte, desde seus centros de produção e excelência, excluída do acesso para o mundo do trabalho e da precarização da existência, o mundo dos não proprietários. Pois, segundo a lei da utilidade marginal, bens que existem na esfera do monopólio ao seu acesso, ela se dá no mundo sobre esse regime de distribuição, troca e competição, de guerra de preços, modo da reprodução de sociedade que é assim. O mercado não se organiza como uma democracia, ele regula e recusa o acesso a um tempo, inclusive aos direitos. E esse é o paradoxo permanente dos psicanalistas, vendedores de psicanálise no mundo: desejando que seu belo saber tenha poder de transformação necessária e social, eles a dispõe de modo exclusivo praticamente para uma classe. Como mercadoria desejada, ela eleva com sistema o seu valor, de troca, bem entendido, enquanto rebaixa seu valor social.

Continuando:

 

Em igualdade de fatores, esse modo de distribuição monopoliza as oportunidades de transações lucrativas para todos que, dispondo de bens, não tem necessariamente de trocá-los. Aumenta, pelo menos em geral, seu poderio nas guerras de preço com os que, não tendo propriedades, só tem a oferecer seus serviços, em forma bruta, ou bens numa forma constituída através de seu próprio trabalho e que, acima de tudo, são compelidos a se desfazer destes produtos para que possam simplesmente, subsistir. Essa forma de distribuição dá aos proprietários um monopólio da possibilidade de transferir da esfera de uso como “fortuna” para a esfera de “bens de capital”; isto é, dá-lhes a função empresarial e todas as oportunidades de participar direta ou indiretamente dos lucros sobre o capital. Tudo isso é válido dentro da área na qual predominam as condições de mercado pura e simplesmente. Propriedade e falta de propriedade, são, portanto, as categorias básicas de todas as situações de classe. Não importa se estas duas categorias se tornam efetivas em guerra de preço ou em lutas competitivas.[2] 

 

Há uma grande ambiguidade nunca resolvida no lugar social do psicanalista como operador e circulador de dinheiro ao redor de seu trabalho, e a ideia constrangedoramente simplória de subsumi-lo, sem crítica, ao princípio da realidade como fundamento organizado do interesse: como vendedor de serviços de saúde e de saúde mental no mercado mais geral, o analista se pensa como um trabalhador, que vende de modo qualificado seu saber e seu corpo, ainda seus músculos, ossos e cérebro, como dizia Marx – mesmo que trabalhe sentado, como um dia me disse um pacientezinho morador de uma favela sobre o que seria um bom trabalho neste mundo... Mas, noutra direção, orientando sua ação para a guerra de preços do mundo dos proprietários e tendo na escala burguesa da vida o próprio campo de subjetivação e gozo de sua própria representação social, sua classe média muito alta, os psicanalistas participam em alguma medida do circuito geral de acumulação do capital, da sua expansão contínua, e exclusão contínua, de fato fazem os seus preços pela lei da utilidade marginal em relação a ele. Por isso, como ganhadores no jogo falsamente neutro do dinheiro, muitos deles tendem a acumular bens de tesouro, podendo ser grandes colecionadores e proprietários, e, ricos com a psicanálise, tendem a entrar em sociedade dos ganhos de capital que partilham ao cuidar de modo tendencialmente exclusivo da saúde da classe senhoril, a que pode pagar por seus custos e desejos, de classe. Senhoril, por que não dizer. Evidentemente, a maioria dos analistas, trabalha em outra faixa de mercado, para a sobrevivência comum de uma classe média inventada comum. Ainda assim imensamente acima do salário médio nacional, trabalho de onde se retira a riqueza que sobra.

Dos muitos grandes psicanalistas de fundo teórico da disciplina poucos se pronunciaram sobre o dinheiro. Freud se interessava pela crítica forte do poder religioso sempre reincidente, permanente, se interessava pela natureza da autoridade paterna e a gestão da repressão social e o enquadramento do sexual como poder, exatamente sobre o qual a sua psicanálise infringia. No entanto, sua sociologia geral de fundo excluía a complexidade produtiva, de vida e poder, da forma Capital. Sua equação primitiva anal, sobre a ideia do dinheiro como retenção e acumulação, fundamento de possessão, é bastante simples, pré-moderna, por assim dizer. Como todos sabemos, dinheiro é bem mais do que posse e tesouro, onde Freud viu seu princípio no próprio corpo humano. Aquela leitura era derivada da análise da neurose obsessiva, com os resultados negativos de sua própria luta de morte, contra o pai. Wilfred Bion, no auge de sua explosão criativa dos anos 1960, chegou a perguntar: “qual é o vértice de fundo de uma sociedade de psicanálise? A pesquisa psicanalítica? Ganhar dinheiro?”... Lacan inclui o dinheiro como lei simbólica, móvel da clínica e angustiante sinalizador do desequilíbrio eterno do psiquismo em modernidade. Uma espécie de lei das coisas que coincidia com uma lei da análise. Não deixa de ser uma própria facilitação das coisas, que dá boa estabilidade social para um homem que insistia na instabilidade permanente das coisas. Gilles Deleuze, grande inimigo e amigo da psicanálise, vai direto ao ponto, na sua crítica imanente ao seu território social, institucional e teórico, no qual percebe a fantasia estruturante do dinheiro no interior mesmo do contrato teórico inaugural do lugar da psicanálise no mundo:

 

Volto rapidamente ao exemplo da psicanálise. Em que uma psicanalista tão original quanto Melanie Klein permanece, todavia, no sistema psicanalítico? Ela mesma o diz muito bem: os objetos parciais dos quais nos fala, com suas explosões, seus fluxos etc., são da ordem do fantasma. Os pacientes trazem estados vividos, intensamente vividos, e Melanie Klein os traduz em fantasmas. Existe aí um contrato, especificamente um contrato: dê-me seus estados vividos, eu lhe devolverei fantasmas. E o contrato implica uma troca, de dinheiro e de palavras.[3]

 

Por tudo isso, o jovem Donald Winnicott, noutra direção, e para o elogio de Deleuze,  pagava a passagem para seus pacientes, mães e crianças, pobres, que atendia no hospital público do wellfare state inglês, onde trabalhou por toda a vida, quando os atendia em seu consultório particular... E eles nunca deixaram de se beneficiar de sua psicanálise, por essa sua posição materna, de economia da dádiva e do direito universal à análise. Assim, ele retirava o seu trabalho do consultório blindado ao social, alienado pela fronteira abstrata do território do dinheiro, a sua presença ou a sua ausência.

O dinheiro se torna a coisa mais íntima e mais banal da existência em sociedades da fantasia da expansão permanente da riqueza, do trabalho, visando mais dinheiro, e mais mercadorias e ainda mais dinheiro, e ainda mais gente, que deseja ainda mais dinheiro e ainda mais, experiência modulada pelo dinheiro, sem experiência... vida da pletora fantástica de expansão permanente, da coisa, ou da sua imagem, da própria mercadoria no seu mundo. O psicanalista está articulado, como princípio, em meio a esse sistema, e a psicanálise, e sua psicanálise, contratual, de trocas, está articulada no fundo dessa mesma ordem, segundo Deleuze. Reprodutor da própria classe, qualificado e elevado em seu trabalho especial, do valor do inconsciente na vida, melancolicamente, o psicanalista é também um reprodutor do mundo que, por vezes, alguns desprezam. Essa é sua neurose socialmente determinada.

Duplo e marcador do valor de circulação da fantástica fábrica universal de mercadorias, a mesma que expolia a terra, faz a guerra da energia e arruína qualquer povo originário, que se tornou nossa vida no mundo desde a explosão da revolução industrial e sua expansão permanente e total, a coisa dinheiro se tornou falsamente neutra, a coisa mais comum a figura social e histórica construída que aparece para cada um como invisível, transparência vital das coisas que não demandam explicação. Ele se resolve, nos psiquismos e na sua própria cultura, apenas como o fato concreto de se ter ou não acesso a ele, como quem encontra ou não o caminho quando perdido em uma cidade, pois, o próprio caminho sempre esteve lá. É assim que a psicanalise, profissional e liberal, de fato ainda o trata, diante de seus pacientes, produtores e portadores simples de dinheiro, ou não. O dinheiro, na ideologia de sua normalidade em nossa vida, é apenas binário, presença ou ausência, e a vida, os prazeres e os direitos humanos e psicanalíticos seguem a sua pulsação natural de sua presença e de sua ausência, como no poema de Brecht.

E o caminho natural do dinheiro certamente nos levará ao grande cofre forte da mercadoria, a sua organização política no mercado, a cidade como shopping, o shopping como cidade, e a internet – outra transparência controlada – como o mercado da imagem, do consumo e da excitação, dos likes, como dinheiro. Assim como o mundo convertido em imagem, para o seu consumo.

É sempre constrangedor falarmos algo sobre o dinheiro, o modulador social secreto, e nada secreto, de nossas existências: ele está em toda parte e nos atravessa sempre e sempre. Mesmo quando vivemos as práticas não mercantis de nossas vidas, que felizmente existem, como se sabe, elas estão enquadradas por custos fixos. O próprio Freud sinalizou a grande hipocrisia social existente sobre ele, não se fala claramente a respeito, hipocrisia sobre o desejo e a assunção de poder na sociedade de classes. Este grande constrangimento em se tocar no assunto, sintoma de um mal social e histórico infinitos, também é resolvido na aceitação da dimensão prosaica do dinheiro, a ideia grosseiramente falsa de sua natureza simples, apenas a presença ou a ausência do que é normal à vida. É o famoso arrume um emprego, ideológico conservador norte-americano. E é constrangedora a verdade de que, todos nossos atos, direitos e experiências, na sociedade da mercantilização universal de tudo, estão atravessados pelo dinheiro, o acontecimento moderno de todos os lugares.

Marcador da exclusão, no mundo total do mercadoria, dos que tem acesso, ele vai representar sinalização de poder, marcação simbólica do poder social, seus habitus, no corpo, na língua e nos lugares de acesso e consumo. Para nos aliviar a culpa do acesso e nos fazer esquecer o privilégio “da vida”, o supermercado burguês toca permanentemente musiquinhas de detestáveis pseudo bossa nova felizes e infantis, para que fiquemos à vontade e esqueçamos a violência inscrita em nossos próprios atos comuns neste mundo. O ridículo mundo do acesso, e sua infantilização permanente dos gozos básicos, enquanto pulamos por cima dos expropriados de tudo jogados na porta. Nos constrangemos quando encaramos de frente nossa situação perante o dinheiro, e cabe a auto-observação analítica do mal-estar, de falar abertamente de dinheiro, sobre o dinheiro e de sua falta crônica e programada na própria sociedade mundial do dinheiro. Porque, assim, preservamos o mito, também fruto da mesma sociedade da expansão permanente da economia, do dinheiro como o sol, de que somos sujeitos autônomos, capazes e livres, inteiros e com direitos, especiais e dignos..., quando o dinheiro, a coisa comum da vida, é apenas um meio, uma passagem das forças e da expressão pessoal. Um direito humano, garantido. E não o modulador forte que é, da vida e da morte no mundo do Capital.

São conhecidos os mitos edulcorados e singelos, contos de fadas liberais, para explicar a origem do dinheiro. Desde Adam Smith, gênio da economia em permanente expansão e sua organização social e de poder, o dinheiro era o mediador, evidentemente neutro do ponto de vista do economista, da troca social complexa em um mundo de muitas coisas necessárias e desejadas. No mundo de multiplicação de interesses e desejos nas coisas, múltiplas e variadas coisas e necessidades, em circuitos múltiplos de comércio, tornou-se necessário, e grande invenção humana, dizia o economista, o dinheiro para se facilitar o comércio geral. Régua comparativa, representação do valor de uma coisa por outra, equivalente geral, como diria Marx depois, o dinheiro se tornava o duplo, a sombra, o cimento e a energia que movia a própria vida das trocas, da sociabilidade do mercado e da realização social do desejo.

O dinheiro era instrumento e meio de comunicação social, a estabilidade das equivalências, a medida das coisas entre si e entre os homens, para que a própria vida social pudesse se dar, assim, simplesmente circular e acontecer. Mediando a troca das coisas necessárias entre os homens, o dinheiro era o objeto mágico mundano, vazio de conteúdo, e potente do que existe, da própria vida social acontecendo através de sua própria vida em meio as coisas, tudo o que ele podia fazer realizar. Porque ele existe, a vida se torna mais fácil e os homens acrescentam um outro termo, objeto social comum, à própria linguagem. No fim, tendo dinheiro, essa coisa simples e boa, complexa e proteica, tudo simplesmente acontece na vida em sociedade. Óleo que permite o motor rodar, ele deve ser celebrado como a substância necessária da vida social daquela forma. Objeto que não se objetifica, meio que transporta o valor e a sociedade, passagem da realização do que existe, potencial social total, o dinheiro só poderia ser celebrado no limite de ser confundido com a própria vida. Um pouco como aquela água que é tudo, do primeiro filósofo, o tempo era dinheiro também para o pai da nação, político, filantropo, cientista, encarnação do iluminismo ativo, Benjamin Franklin.

Por isso, em um momento avançado da sua produtividade como natureza neutra, ativa para a vida, da sociedade em relação, ele é coisa tão feliz quanto a própria realização do desejo, e tão prosaica quanto ela, da compra da vida, deixemos claro, simplesmente acontecendo. É o significante vazio geral, um simulacro da linguagem, que vai de fato modular as potências da linguagem nas trocas, até chegar a substituí-la, na sua reificação geral da celebração de uma coisa potência.  A catástrofe anterior, que circunscreveu a vida social nestes termos, com todos os efeitos de terror como natureza recusada próprio ao mundo do capital, já havia ocorrido. E para uma classe que tinha acesso garantido ao dinheiro, e suas trocas neutras e comuns, tratava-se de celebrar as suas potencias civilizatórias, ao custo de todo o resto.

O mundo já havia acabado, como disse Rousseau sobre o estabelecimento do regime da propriedade, mas tratava-se de celebrar o poder civilizatório de quem resta vivo no interior do jogo da propriedade, o mais valor em expansão, mediado pelo dinheiro. E pelas armas. Como permutação infinita das coisas e das experiências, sociais e nas próprias coisas, o dinheiro circulando era o eco permanente da expansão do seu próprio universo, modernidade, hiper-produtiva e trocante, hiper-destrutiva. Karl Polanyi vai lembrar, com singeleza, que terra e trabalho, a base da propriedade e da alienação cotidiana do homem no sistema geral do mais valor, são verdadeiras mercadorias artificais, efetivamente falsas em seu caráter social: para mantê-las no regime geral da acumulação, produção e circulação das coisas – com dinheiro no meio – a vida humana, a natureza social e geral será permanentemente distorcida, gerida como crise e desequilíbrio, tendente à guerra geral planejada. As falsas mercadorias do que deveriam ser entidades de outra ordem da vida, propriedade e trabalho, produzem sociedade em falso, equilíbrio instável de uma destruição programática permanente. O mesmo mundo de submissão à subjetivação da mercadoria, a-social, que Adorno constatou fazendo efeito em tudo como mínima morália. A figura do anjo da história estarrecido de Walter Benjamin foi amarrado, entre a verdade do horror que via aos seus pés – nomeando, a guerra, a objetificação mercantil da natureza, para a sua troca por mais valor, a escravização humana e dos animais como commodities mundiais, o pacto de ciência e exploração, a mentira da arte industrializada como auto justificação do mal que se produz – e as linhas de força forte que sopravam do paraíso levando-o sem trégua para a promessa falsa do futuro, o progresso. Progresso que é isso mesmo. A matéria, imaterial, destas linhas de força que arrastam o anjo, daquela imagem poética do fechamento do todo, como sonho, pesadelo, para que nós despertemos, também era o dinheiro. Era o dinheiro que soprava, e acumulava, como sempre mais, mais lá na frente, no futuro vazio do anjo da história. O progresso como terror. Benjamin não era um poeta abstrato do despertar na história. Também marxista, era um filósofo anticapitalista. Seu anjo da história é Elon Musk passeando de foguete particular sobre uma terra arruinada, que, ao invés de o horrorizar, o diverte.

Ao contrário na flecha do tempo histórico, para Adam Smith e sua Europa nova, explodindo em uma revolução técnica nunca vista, cheia de perspectiva de futuro, como expansão da nova lógica da vida, financiada pelo capitalismo colonial escravista, onde a indústria criava novas classes, novo mercado espetacular, expandindo o dinheiro como a massa geral de sua valoração, duplo da expansão das próprias coisas sobre a vida, tal mundo só podia ser espécie de céu na terra. Seus anjos eram os verdadeiros burgueses industriosos, vitorianos e calculistas, filisteus culturais, caminhando sobre a cidade redesenhada para o mercado e o mundo da sua própria obra. Baudelaire os fotografou andando na rua. Benjamin estudou a sua arquitetura do sonho suspenso. O impressionismo da cidade do espetáculo, de TJ Clark, os pintou. Capitalismo, enfim, estruturação total da vida social para a fábrica, para o espetáculo da mercadoria e a reprodução de poderes e exclusões, com polícia, com 18 Brumário e ditadura, quando necessário – 1964... De fato, o Capitalismo sempre foi neoliberal.

Assim, por exemplo, um em um milhão, ao mesmo tempo histórico da formação das nações da indústria social europeia ocorria o expansionismo territorial americano, sobre o mesmo princípio, de novos negociantes puritanos projetados em novo mundo. Aquele mesmo que desde o século XVII destruiu a terra, índios, escravizados, fundando a ideia de uma república para os colonos que amealhavam e faziam circular o valor, que pôs a ideia nova de nação moderna fundada como império em expansão colonial permanente. O que viria a ser de fato a nação império como império global, baseada na conquista permanente de território, e de mercados, em qualquer parte, na sua América, e depois no seu mundo.

 Isso enquanto o valor se expandia, as raízes históricas do PIB, mais potência para a próxima rodada de despossessão e genocídio colonial, das vidas:

 

James Madison resolveu (...) o problema inaugurando um modelo original de império: para as repúblicas baseadas no princípio da soberania popular, a vastidão territorial não era uma danação, mas uma benção, um seguro contra a corrupção das virtudes cívicas, além de alimentar a prosperidade material. Estava lavrada a certidão de nascimento do mito norte-americano da expansão benigna. No resumo de Bill Williams: a fórmula de Madison se destinava a banir do horizonte a ameaça da divisão social causada pelos conflitos econômicos crescentes, assegurando que só a expansão – a rigor, o pivot em torno do qual irá girar toda a história norte-americana – forneceria a chave preventiva contra os choques disruptivos a caminho, a expansão não só produziria um império para a exploração e o desenvolvimento, como interporia entre as classes e os interesses antagônicos distâncias no espaço e no tempo providenciais. (...) Voltando aos pais fundadores, é preciso lembrar também que o engenhoso sistema de Jefferson, de reprodução contígua de Estados individuais, lançou o fundamento da futura expansão territorial. Coroando tal projeto – agora sim verdadeiramente “imperial” – os ideólogos jacksonianos do período subsequente aos anos de formação, amalgamando de vez territorialismo e capitalismo, encarregaram-se da visão mais agressiva dessa visão inaugural em que uma república popular-escravista precisa de fato se dilatar espacialmente para se manter de pé – estava no ponto o mito fundador de uma sociedade de fronteira, quer dizer, entre tantas outras consequências, a crença na ‘regeneração pela violência’, confirmada pela graça da riqueza econômica milagrosa ao alcance da mão. Não se pode portanto dizer sem mais que os Estados Unidos começaram sua carreira de potência como um império tradicional. Mas podemos retirar as aspas (sempre implícitas), pois também é disso que se trata, um império que se alastrou pelo continente espetando postos militares nos territórios recém-conquistados tanto para melhor defende-los quanto para explorá-los economicamente. Forte Apache, Forte Laramie e Cia., cujas réplica hoje recobrem o mundo como tantas outras guarnições de fronteira, eram de fato bases militares avançadas num território obviamente hostil que estava sendo ocupado e civilizado, por certo que no sentido ‘pioneiro’ de irradiação econômica na esteira de uma pax civilizadora.[4]  

 

Tudo isso quer dizer que nação moderna, guerra e conquista, império, colonização para o sistema da cultura e do mercado, sociedade de classes e dinheiro em expansão permanente, como a coisa toda, estavam ligados como uma espécie só de máquina do mundo – como disse também o famoso poema de Drummond, e como José Miguel Wisnik reconheceu recentemente o efeito social, econômico global, da mineradora mundo passando pela rua de minha cidade, e dissolvendo as montanhas, em toda a sua obra.

A história do dinheiro é antiga como a história da humanidade. Estamos falando do dinheiro em expansão permanente, que é um fato específico de organização do poder pelo dinheiro. Mas houve muito tempo humano, outras ecologias, sem ele. Não há evidencias antropológicas alguma sobre o fato inventado de que o dinheiro tenha sido inventado pela inteligência simbólica humana para superar a forma das trocas diretas, o escambo, ou a dádiva, na medida em que a sociedade se complexificara em mundo produtor de mais mercadorias, das quais não se sabia mais medir e equalizar o valor. Este conto, do dinheiro como instrumento simples da complexidade social, que de algum modo estaria fora dele, mas a seu favor, jamais se verificou em sua produção em sociedades não modernas e não ocidentais. Nunca se viu uma transição de complexidade do mundo do não dinheiro, da troca e da circulação das coisas mesmas, sua ética e cosmologia, para o mundo do dinheiro ativo em expansão e sua criação e destruição permanente. O que sempre se percebeu, na pesquisa antropológica científica, foi o real choque traumático e definitivo dos mundos livres do dinheiro, muitas vezes sem Estado e especialização produtiva do trabalho, frequentemente de equilíbrio ecológico e em grandes linhas comunista, com o mundo em que o dinheiro e sua dita produtividade já existe e funciona, e com ele, instâncias sociais múltiplas de interesses e de poder, e a preocupação constante com a produção reprodução. 

O choque é sempre a natureza da expansão mundial do dinheiro sobre os espaços sociais sem dinheiro, nunca a transição. A arrogância fundamental deste processo, a transformação da sua prometida emancipação em dominação e extermínio epistêmico e ecológico, sua dialética bárbara do esclarecimento, é bem conhecida. Um sistema mundo social econômico se impõe a uma cosmogonia, natureza e ontologia outras, qualquer que seja. E a liquida pela raiz, aumentando sempre o próprio valor, no gesto mesmo do extermínio. Historicamente, um lugar mundial de realização global do dinheiro, entre os seus poucos donos e senhores – o “alto comando” da economia capitalista mundial, “o verdadeiro lar do capitalismo”, nas palavras de Braudel – sempre coordena exércitos, frotas, amplos interesses, financiadores, ciência, analistas e opinião social que recebe e partilha o resultado do butim – teologia... nos séculos de colonização pela guerra direta, racismo de desprezo e de falsa superioridade civilizatória, racismo científico, democracia de massas de consumo... –. E faz circular todo o mundo como mercadoria, guerra colonial ou submissão do trabalho à maquinária, orientado por seus centros de economia mundo em sucessão, o lugar da realização final da acumulação global e seu potencial de glória e soberania: Gênova, Holanda, Grã-Bretanha, EUA...   

 

A importância e a radicalidade das guerras de subjetividade na Europa e no Novo Mundo tornam-se manifestas pela destruição promovida pela acumulação primtiva que opera não somente no nível das condições materiais de vida, mas também nos territórios existenciais, nos universos de valor, na cosmologia e nas mitologias que estavam no fundamento da “vida subjetiva” dos povos colonizados e dos pobres do mundo dito “civilizado”. A desterritorialização priva os colonizados, as mulheres e os proletários da sua vida “a-orgânica”, segundo a expressão de Deleuze e Guattari que podemos redirecionar para a análise fouacaultiana. Com efeito, se o biopoder só pode investir a vida como administração das condições “biológicas” da espécie pelo Estado (fecundidade, mortalidade, saúde etc.), é porque a acumulação primitiva foi o agente prévio da destruição desta dimensão “subjetiva”. As guerras de subjetividade não são, portanto, um “suplemento” ao Capital em sua face “subjetiva”: elas constituem a especificidade mais “objetiva” das guerras contra as mulheres, os loucos, os pobres, os criminosos, os diaristas, os operários etc. Elas não se contentam em “desfazer” o adversário (para melhor negociar um tratado de paz, segundo a concepção clássica da guerra interestatal), mas visam, precisamente, a uma “conversão” de sua subjetividade, a uma conformação de seus comportamentos e condutas à lógica de acumulação do capital e sua reprodução. Nesse sentido, a produção de subjetividade é ao mesmo tempo a primeira produção do capitalismo e o objeto principal da guerra e da guerra civil em particular. A formatação da subjetividade é o nó estratégico dessas guerras, e o reencontraremos ao longo de toda a história do capitalismo. Para Félix Guattari, de quem pegamos emprestada a expressão, as “guerras de subjetividade” são guerras políticas de “formatação” e de “pilotagem” de uma subjetividade necessária à produção, ao consumo e à reprodução do Capital.[5]

 

Estes vértices de produção humana são, até segunda ordem, na operação mundial do dinheiro como Capital, o que ele sempre é, simplesmente excludentes, uma vez que o dinheiro é racionalizante e totalitário do que não se registre na sua mensuração. Tudo é medido na régua mercantil, e ela mede a própria experiência da realidade. Torna-se o princípio da realidade, como princípio de utilidade, ou de desempenho, tão pouco estudado pelos psicanalistas. O que não se registra aí, não necessita existir. Não importa, e não existe. Não é realidade... O que se sabe de fato, ao contrário da ideia da troca neutra, do dinheiro como a linguagem comum da vida, é que a penetração do mundo do dinheiro sobre os mundos não ocidentais, sem dinheiro, sempre se dá sobre a égide da marcação e da renovação da dívida, a estruturação da desigualdade, e com ela, do poder. O dinheiro é o fiador, o índice e o meio de garantia da dívida, da violência política da submissão da vida ao outro, aquele que a marca como valor. Por isso o vínculo íntimo entre a tessitura da vida pelo dinheiro e escravidão.

De fato, muitos e muitos dos milhões de homens e mulheres submetidos que vieram aportar na América, no Caribe e no Brasil nos séculos XVI, XVII e XVIII, no mais absoluto movimento de desenraizamento que já se conheceu, o foram submetidos incialmente por um regime local de endividamento, de uma nova ordem societária com suas elites que operavam culturalmente para o endividamento, a entrada dos homens e das comunidades tradicionais no mundo do dinheiro moderno, de novos poderes políticos de reinos e de Estados sobre os seus próprios corpos. Corpos que, ao invés de não terem valor, passavam a ser valorizados assim.

 

O tráfico de escravos do Atlântico como um todo foi uma rede gigantesca de acordos de crédito. Armadores sediados em Liverpool ou Bristol adquiriam bens dos atacadistas locais, em condição de crédito facilitadas, esperando prosperar ao vender escravos (também a crédito) para os proprietários de terra nas Antilhas e nas Américas, que tinham agentes em Londres que financiavam o negócio com o lucro do açúcar e tabaco. Os armadores então, transportavam seus produtos para os portos africanos, como o de Velha Calabar. A própria Calabar era cidade-Estado mercantil por natureza, dominada por mercadores africanos ricos (...). No apogeu do comércio, os navios britânicos levavam grande quantidades de tecido (tanto produtos das fábricas recém-criadas em Manchester como calicós da Índia) e produtos de ferro e bronze [e barras de bronze utilizadas como dinheiro], além de produtos secundários, como contas, e, por motivos óbvios, quantidades substanciais de armas de fogo. Os produtos eram então passados para os mercados africanos, de novo a crédito, e só então distribuídos pelos agentes que subiriam o rio. (...) Rio acima, os servos por dívida desempenhavam um papel importante no comércio. Na maior parte da África o tráfico de escravos atravessava os principais reinos, como Daomé ou Ashanti, para travar guerras e impor punições severas – um recurso muito utilizado pelos governantes era manipular o sistema de justiça para que qualquer crime fosse punido pela escravização, ou com a morte, seguida da escravização da esposa e dos filhos, ou ainda por multas abusivas que, em caso de não pagamento, resultariam na venda do inadimplente e de sua família como escravos. (...) O clima dominante de violência levou à perversão sistemática de todas as instituições da economia humana existente, que se transformaram em um gigantesco aparato de desumanização e destruição.”[6]

 

Uma vez endividados, individuados para o mundo da circulação do valor, como próprio corpo aproximado da mercadoria, reificados para o dinheiro, entre a finança política e o poder direto, a commodity global, sob o regime moral de um poder que cobra ou mata, então, a próxima mediação social era a escravização. De fato, a perda de toda mediação na marca direta de sangue sobre o corpo – aquela origem da moral superiora dos vencedores, segundo Nietzsche, guerra que confirma a dívida, e dívida que confirma a guerra – na transformação direta do corpo em extensão do domínio, no poder atualizado.

A necropolítica, de Mbembe, também era política financeira. Entre o dinheiro e a escravidão, saldar a dívida forçada, feita para não ser paga e perder a vida no domínio furioso do senhor, a escravização local e global, se estabeleceu grande parte do valor antropológico original do dinheiro no mundo da modernidade. Purificá-lo, no futuro da história do capitalismo, como se ele fosse coisa neutra, foi grande astúcia do ocultamento do poder. Por dívida, ou por voracidade direta da guerra dos centros produtores globais de mercadorias, o escravizado terá seu corpo transformado na mais pura massa reificada para a produção de valor. Força de trabalho e meio de produção simultaneamente, o escravizado é o princípio puro da apropriação do trabalho para o mais dinheiro. No corpo escravizado, o princípio da sua redução econômica moderna, nenhum valor, nenhuma humanidade, nenhuma cultura, nenhum saber, nenhuma ética ou expressão, nenhum direito ou linguagem que escapem à produção importam. O escravizado deveria ser a enxada que trabalha sozinha, que seu corpo reificado substitui, de Aristóteles. Mero fator econômico, disponível para a mais produção e para a morte sem custos, resgatado novamente e eternamente como extrativismo de acumulação primitiva, o escravizado é a demonstração cabal – de princípio e de fundo da vida sobre a montanha mundial do dinheiro reinvestido permanentemente em seu corpo – de que a mercantilização do trabalho é, como dizia Polanyi, uma catástrofe perfeita do social.

Reza a lenda que ele só foi substituído pelo aumento da produtividade do trabalho na fábrica oitocentista inglesa..., mas há controvérsias: a luta secular pelo direito à escravidão do senhorio do Brasil do café do século XIX, não confirma a ideia da escravização como mal negócio. É o que dizem mesmo os historiadores de hoje da chamada nova história do capitalismo, dentre eles Luiz Felipe de Alencastro. Eles concluem outra coisa, que o trabalho escravo era tão produtivo, de mais valor, o que importa, do que a fábrica moderna, que centralizou as fantasias sobre a história do capitalismo como progresso. E o disfarce do livre contrato para o trabalho, alienado à regulação total da vida pelo mercado – que, hoje, ainda mal emprega e mal reconhece a existência individual dos excluídos pelo todo da vida econômica mundial, o melhor modo atual de ganhar... – nunca ultrapassa por completo a totalização do desejo de escravização do trabalho, como se deu na origem e na vida paralela secular do capitalismo mercantil escravista de todo o sistema das relações liberais de mercado e trabalho. A lógica da produção mundial do comércio baseado em extrativismo militar de mão de obra escrava, tipo próprio de ciclo sistêmico de acumulação, nas palavras de Giovanni Arrighi, o sistema colonial escravista do Atlântico Sul, desde o qual o Brasil se constituiu, durou três séculos e meio. Nada por acaso, os exatos mesmos anos do desenvolvimento do sistema da indústria central, com sua cultura liberal de mercado e burguesa, puritana, sua gestão política e policial forte das classes trabalhadoras liberadas em massa, não sem revoltas e lutas, para o mundo do dinheiro em expansão daquele outro modo.  

Assim, por exemplo, um estrangeiro e pequeno novo senhor escravista do Brasil podia demonstrar com a maior precisão o vínculo absoluto entre a posse dos corpos, o estatuto dominado à bala, chicote e tortura, e a lógica contínua desta dominação própria ao dinheiro, empregado na compra dos corpos em dívida e na produção e venda de novos valores de mercado, comércio cotidiano, do escravizado de ganho nas grandes cidades do Brasil:

 

Quero afinal fornecer um cálculo demonstrativo de que no Brasil não se pode empregar seu dinheiro melhor do que comprando escravos e alugando-os para trabalhar. Para isso, estimei a duração da vida do negro em 35 anos e a idade por ocasião da compra em 15, admitindo, por hipótese, que no primeiro ano nada ganhe, porem em cada um dos seguintes renda 7 mil réis mensais, o que perfaz 80 mil réis por ano. Apliquei para o cálculo os juros de 12%, de uso geral no país. Infere-se daí que, se emprego um conto de réis para adquirir 5 escravos, ao fim de 20 anos possuirei um capital de mais de 26 contos, enquanto que, uma soma idêntica, de um conto, colocada a juros ao mesmo tempo, só teria aumentado para nove contos e quinhentos mil réis. Completamente diverso será o resultado deste cálculo, se eu empregar o rendimento anual proveniente do aluguel de meus escravos paulatinamente na compra de outros e não der a juros, como admiti no primeiro computo. Então se conclui que, após o decurso de 20 anos, possuirei um capital de 36 contos e 728 escravos, 300 de 16 anos, 120 de 18, 100 de 20, 60 de 22, e assim por diante, os quais me rendem anualmente 62 contos. Quem souber calcular mais ou menos com juros compostos facilmente se convencerá da justeza de minhas contas.[7]

 

É um estrangeiro que veio fazer a vida no Brasil das origens, em 1825, que escreveu essas palavras precisas sobre a natureza, material e econômica, da escravização moderna. Elas nos chocam mais quanto mais imaginamos que o dinheiro não é a máquina social de violências que de fato é. Mas nos alertam sobre o vínculo de poder, dinheiro e desprezo humano pela vida do trabalho, em toda parte e em todo tempo. Era este o núcleo duro da escravização americana: um ótimo negócio, para quem ganhava tudo. Toda a ideologia paralela da superioridade – as acusações compensatórias generalizadas de barbárie dos não modernos, as manipulações teológicas, como as de Antônio Vieira, para equiparar o destino do escravizado ao de Cristo, sacrificado por um bem maior, as invenções interessadas do decoro senhoril caritativo do escravizado, representado no coração cristão do senhor, mas não nos direitos efetivos, da gradual ascensão da ideologia da superioridade racial científica branca, às graduais e falsas ideias nacionais de trabalho conjunto por um novo mundo por vir, da democracia escravista racial –  todas estas nomeações a favor do senhores ao longo dos séculos, e ainda outras, velhas e novas, tinham o denominador comum da realização dos dois mercados, os locais e os mundiais, de acumulação como fundo: o do negócio financeiro militar do tráfico, e o do negócio da atualização do corpo do escravizado como força e meio de produção, a sua exploração direta, nas fazendas, nas minas e nas cidades, na vida, para a produção de bens também de comércio mundial.

Realizando seus valores, e destruindo mundos e corpos, produzindo nova concentração e inversão de dinheiro no sistema mundial da produção escrava, o tráfico mundial de gentes, e novo ciclo de realização de valores nas plantations americanas, e assim por diante, prosseguia a formação do Capitalismo moderno, seu sistema financeiro, como escravidão. A escravização de continentes inteiros, e seu deslocamento pelos mares em navios militares modernos do terror, como explicitado no famoso poema de Heine sobre o navio negreiro internacional, estava fundada e era garantida pela própria reprodução do capital nela invertido. As fantasias imaginárias de justificação do terror da produção mundial de valor, são paralelas, e de fato mudam através dos tempos. Mas o cálculo mercantil financeiro implicado no ato mundial de escravizar, não.

 

Alguém pode argumentar, sempre protegido e em boa posição em relação à propriedade a aos fluxos contínuos de capital do mundo, para cima: estamos muito longe destas origens barbaras do capitalismo que submete tudo e qualquer coisa à reprodução móvel do dinheiro. Estamos? É certo? Certamente tal proposição recusa saber, como sempre, sobre os grandes esforços reais políticos feitos no Brasil, pós-2016, de Michel Temer e Jair Bolsonaro para a liberalização do trabalho análogo à escravidão, a favor do agronegócio global, com seu extermínio sistemático das florestas e a liberalização de terras indígenas para a baixa e a alta mineração, com o extermínio, direto e planejado, dos povos da floresta... Também, um argumento confortável assim, de classe proprietária bem posicionada na propriedade e na guerra de preços nos termos de Weber, não deve saber nada sobre o que significa as doze horas de trabalho precarizado, que arruínam saúde física e mental e a economia dos trabalhadores, apenas para pagar as contas, como todos dizem, daqueles que vivem pelos aplicativos de transportes e entregas, neo-escravos de ganho do tempo. Esse novo senhorio, mais uma vez, e sempre, nada sabe das violências permanentes que sustentam o seu mundo de conforto, direitos, progresso e... bastante dinheiro.

Eles não podem parar a sua máquina de reprodução e proteção da verdade. A máquina do mundo a que se atiraram com o gozo dos protegidos, até a última rodada do jogo mundial da acumulação, até a última pinguela em que se seguram também, quando então não haverá mais nenhuma terra para explorar, e nomear como dinheiro.

 

Tales Ab'Sáber é psicanalista e ensaísta dedicado à crítica da cultura e ao destino da cultura crítica. Formado em Cinema e Psicologia pela USP, é professor de Filosofia da Psicanálise na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). É autor, entre outros, de O sonhar restaurado: formas do sonhar em Bion, Winnicott e Freud (Editora 34, 2005) e A música do tempo infinito (Cosac Naify, 2013), ambos premiados com o Jabuti, e de Lulismo, carisma pop e cultura anticrítica (Hedra, 2012).

 

 



[1] Max Weber, “Determinação da situação de classe pela situação de mercado”, in: Ensaios de sociologia, Rio de Janeiro: Guanabara, 1979, p. 212.

[2] Ibid.

[3] Gilles Deleuze, “Pensamento nômade”, in: A ilha deserta, São Paulo: Iluminuras, 2006, p. 322.

[4] Paulo Arantes, Extinção. São Paulo: Boitempo, 2007. pp. 122-123

[5] Éric Alliez e Maurizio Lazzarato, Guerras e capital, São Paulo: Ubu, 2021, p. 57.

[6] David Graeber, Dívida, São Paulo: Três estrelas, 2016, pp. 194-196.

[7] Carl Schlichthorst, O Rio de Janeiro como é, 1824-1826 – uma vez e nunca mais. Rio de Janeiro: Editora Getulio Costa, 1943, p.142.