O divã é o lugar apropriado
para acolher aquelas e aqueles que são reduzidas/os a um silêncio causado pelas
minorizações de raça, gênero, sexualidade e classe.
“O pensamento
"decolonial" reforça o narcisismo das pequenas diferenças",[1] aprendemos com
uma coluna escrita por psicanalistas, assinada por muitos deles, e publicada no
Le Monde[2]
em 26 de setembro de 2019. Próprio de ativistas “obcecados pela identidade,
reduzidos ao identitarismo”, esse pensamento perigoso “se infiltra na
universidade [e] [...] ameaça as ciências humanas e sociais sem poupar a
psicanálise”. Em nome da “singularidade do indivíduo” ou de uma psicanálise
apresentada como “universalismo” e “humanismo”, trata-se aqui, nem mais nem
menos, de uma verdadeira operação de censura. As minorias políticas francesas
racializadas, que não reproduzem a única língua autorizada, aquela da qual as/os
autoras/es do fórum são as/os representantes, não têm nada para fazer na
universidade ou no divã. Se “acadêmicos, pesquisadores, intelectuais,
psicanalistas se uniram em torno disso”, é porque estão enganadas/os, seduzidas/os
por essas sereias “sectárias” e “comunitárias”. E a coluna pretende trazê-los
de volta ao caminho certo, negando a existência do vasto campo acadêmico dos
estudos pós-coloniais e decoloniais e estabelecendo uma clara distinção entre
essas minorias, forasteiras, e os acadêmicos e psicanalistas, que, felizmente,
não provêm de lá.
A questão que este texto coloca com força e a
despeito de si mesmo é a da legitimidade da fala e dos discursos admissíveis.
Na universidade, espaço de construção crítica do conhecimento, ou no divã do
analista, lugar de sua desconstrução, quem pode falar, sobre o quê e o que
aceitamos ouvir? Podem as pessoas alterizadas/os, minoritárias, objetos do
discurso oficial antirracista, também serem seus sujeitos e designarem elas
mesmas o que vivenciam do racismo?
Num preocupante desconhecimento de pesquisas
pluridisciplinares desenvolvidas há décadas em muitos países, ou por desprezo
chauvinista pelo que excede o “universalismo” francês, o uso sociológico dos
termos “raça” e “racialização” é aqui proscrito. Que um interdito da linguagem
seja assim pronunciado em nome da psicanálise é, no mínimo, desconcertante.
No entanto, "a" raça, distinta da
impostura racista biologizante "das" raças teorizada no século XIX, é
um conceito acadêmico – sem ofensa às/aos autoras/es do texto –, que não se
refere a qualquer identidade biológica, fenotípica, naturalizada, mas a
relações sociais de poder. As minorias racializadas só constituem grupos
uniformes pela discriminação a que são submetidas: seus membros não têm nenhuma
“identidade” homogênea além da inferiorização e dos traços negativos que lhes
são atribuídos por um grupo majoritário. O paradoxo que, por preguiça
intelectual ou propositalmente, as/os autoras/es da coluna se recusam a pensar
é que a raça não existe, mas seus efeitos políticos não são menos reais.
Falar de racialização equivale,
portanto, a designar um racismo social, estrutural, independente do racismo
intencional, psicológico ou ideológico, próprio de indivíduos ou instituições
datadas. Assim como o machismo, além de uma misoginia ideológica ou
psicológica, é efeito de um sistema social banalizado de desigualdades,
hierarquias e violência de gênero; assim como a homofobia refere-se, além do
ódio individual, psicológico ou ideológico a gays e lésbicas, a um
heterocentrismo ordinário, classificando as sexualidades e as prerrogativas
sociais que estão a eles associados; da mesma forma, o racismo estrutural
designa um mecanismo social, às vezes até sem "sujeitos racistas",
atribuindo diferentes posicionamentos e distintas "identidades" a
grupos, a partir de relações sociais de poder. Estas são as confusões que uma
associação um tanto séria – universitária? – de textos de estudos pós-coloniais
e decoloniais provavelmente teriam permitido que as/os autoras/es desta coluna
evitassem.
Essa condenação ao silêncio do
pensamento decolonial e dos sujeitos racializados coloca, então aqui, um
verdadeiro problema epistemológico e ético para a psicanálise. Convém
perguntar, justamente contra esse fórum, se a questão do acesso impossível à
representação e ao discurso não é uma questão eminentemente psicanalítica. A
subalternização não é um componente do processo de subjetivação? Como essa/e
subalterna/o psíquica/o pode falar, quais efeitos de silêncio são provocados
pelas minorizações de raça, gênero, sexualidade e classe e qual palavra é então
possível em análise? O que faz o silêncio na sessão analítica é também o que
foi reduzido ao silêncio cultural e historicamente, por uma razão hegemônica
“universalista”?
A singularidade irredutível,
psíquica e social, que uma escuta psicanalítica busca respeitar, não está
isenta das relações sociais de poder. Porque a psicanálise, e é isso que as/os
autoras/es dessa coluna se esforçam por descartar, é fundamentalmente política:
o sujeito do inconsciente se inscreve nas configurações de poder do espaço
social. Mas também se revela político pelos efeitos normativos, aqui visíveis
ou, ao contrário, pelos efeitos de desconstrução que sua prática e sua
teorização podem provocar.
Por qual ponto cego, por qual
narcisismo defensivo um/a analista evacua de sua escuta os efeitos psíquicos
dessas questões sociais e políticas? Que violência social, vivida
cotidianamente pelas/os analisantes, então, se perpetua no consultório da/o
analista quando ela/e escamoteia, assim, as relações de discriminação por trás
de um sujeito do inconsciente apolítico e universal?
A psicanálise concebe qualquer construção de
identidade como uma unificação imaginária que, se pode ser politicamente real,
permanece fantasmática. Essa desconstrução da fantasia de identidade deve, no
entanto, ser acompanhada de uma análise do modo como funciona uma identidade
implícita, na enunciação supostamente neutra da psicanálise. Se, portanto,
muitos analistas descartam as identificações minoritárias como capturas
imaginárias, essa mesma captura igualmente caracteriza a identidade majoritária
implícita desde a qual elas/es falam (masculina, heterocêntrica, ciscêntrica,
ocidental, branca, burguesa) e que também é construída,
porém não é entregue à mesma crítica. Quantos desenvolvimentos sobre a
transferência, as representações conscientes e inconscientes, a partir das
quais o analista escuta e fala, serão necessários para que possamos ignorar
isto?
A raça, as diferenças Norte-Sul, as desigualdades e discriminações na migração, no acesso ao trabalho, moradia, formação, ascensão social, não desaparecem por um pensamento mágico, uma noção que os psicanalistas estão longe de desconhecer. O suplemento da alma [3] de um humanismo convocado contra o racismo e o autoproclamado universalismo da psicanálise ou da República, não resolvem a questão. Pior ainda, precipitam um retraimento identitário entre intelectuais ou psicanalistas que, em qualquer outro discurso que os descentralize, inflige um silenciamento, uma assimilação forçada, um interdito de permanência ou uma deportação para a fronteira do consultório. Esquecer isso é fazer do consultório do analista um anexo do Serviço de Assuntos Indígenas.
Texto originalmente publicado na França no dia 10/10/2019 na seção Tribune do Libération e pode ser acessado em: https://www.liberation.fr/debats/2019/10/10/la-psychanalyse-est-le-contraire-de-l-exclusion_1756779/.
Thamy Ayouch é psicanalista e professor na Universidade de Paris.
[1] Título de matéria do Le Monde a que este artigo faz referência e que pode ser acessado em: https://www.lemonde.fr/idees/article/2019/09/25/la-pensee-decoloniale-renforce-le-narcissisme-des-petites-differences_6012925_3232.html . Um coletivo de 80 psicanalistas protesta, em um fórum do "Le Monde", contra a crescente influência de um dogma que, segundo eles, ignora a primazia da experiência pessoal e nega a especificidade do humano.
[2] Jornal francês.
[3] Expressão que aparece em Henri Bergson e Le Breton.