« A catástrofe é o elemento vital e o modo normal de existência do 
capital em sua fase final»
Rosa de Luxemburgo (1913)

As palavras de ordem « Não à guerra”, “Paz”, “Nem Putin nem Biden” parecem fracas demais e impotentes se não encontrarem sua força num  contra  Putin e  contra  Biden. A oposição à guerra deve se apoiar numa luta encarniçada contra as diferentes formas de capitalismo e de soberania que lutam entre si, implicadas que estão na organização da dominação, da exploração e da guerra. O apelo dos Socialistas internacionais da conferência de Zimmerwald, em 1915, nos lembra uma verdade muito simples, embora ativamente esquecida. A guerra “advém da vontade das classes capitalistas de cada nação de explorar o trabalho humano e as riquezas naturais do Universo” – de modo que o inimigo principal está, ou está  também , em nosso próprio país.

Fomos pegos de surpresa e ficamos desorientados, como se esta guerra fosse uma novidade que teria eclodido feito um raio num céu sereno da paz. Contudo, desde que o Departamento de Estado anunciou o fim da História (1989), a paz e a prosperidades sob o beneplácito do Tio Sam, o Pentágono e o exército americano engajaram uma sequência impressionante de missões humanitárias pela fraternidade entre os povos:

Panamá 1989

Iraque 1991

Kuwait 1991

Somália 1993

Bósnia 1994 – 1995

Sudão 1998

Afeganistão 1999

Iêmen 2002

Iraque 1991 – 2003

Iraque 2003 – 2015

Afganistão 2001 – 2015/2021

Paquistão 2007 – 2015

Somália 2007 / 8, 2011

Iêmen 2009 – 2011

Líbia 2011, 2015

Síria 2014 – 2015

 

Sem rivalizar por este Oscar, depois da Chechênia e sua guerra de extermínio (com a cumplicidade do Ocidente),    usando o terrorismo como inimigo principal da humanidade, coube à Rússia esmagar qualquer traço de primavera síria e salvar o regime de Assad, através de suas “operações militares especiais” na sua zona de influência (Geórgia, Moldávia, Ucrânia).

Mas as guerras entre as potências nunca acontecem sem serem acompanhadas por guerras de classes, guerras raciais e guerras contra as mulheres, que cada Estado trava por sua própria conta.

Ora, o fato é que os movimentos políticos contemporâneos se desvincularam completamente da tradição que colocava no centro do debate e da ação política as questões da guerra e da revolução. A ponto de podermos perguntar se a maior vitória da contrarrevolução não teria sido de nos fazer acreditar que estas questões foram definitivamente superadas. No entanto, enquanto o Capitalismo e o Estado reinarem, elas continuam totalmente atuais.

Como chegamos a esse ponto?

Para compreender a guerra atual, é preciso remontar à queda do Muro de Berlim e explicitar as mudanças estratégicas que, na época, não foram realmente compreendidas, visto faltar uma análise das revoluções do século 20.

Os ocidentais representam o maior perigo para a paz no mundo porque estão muito conscientes do duplo declínio que os ameaça: o da Europa, desde a primeira guerra mundial, e a dos Estados Unidos da América, a partir do fim dos anos 60. Eles provocam    uma desordem política e econômica atrás da outra, disseminam o caos e a guerra, pois, além disso, se enganaram redondamente sobre a nova fase política que o desmoronamento da União Soviética abria.
 

Os ocidentais (e sobretudo os governos americanos, com todo o establishment industrial, financeiro, a burocracia do Pentágono etc., a diferenciar do povo americano dividido por uma guerra civil  larvar  em curso!) estavam convencidos de terem triunfado, quando na verdade tinham sido derrotados, ainda que de forma diferente dos soviéticos. Este é um ponto muito importante que explica todas as escolhas catastróficas feitas nos últimos trina anos, entre elas a expansão da OTAN em direção à Rússia, o que está na origem da guerra na Ucrânia, e que não será a última.

Alberto Negri escreveu nestes dias : « Dede 1997, os EUA tinham prevenido George Kennan, arquiteto da política de contenção da União Soviética: ‘A expansão da OTAN é o erro mais grave dos EUA desde o fim da guerra fria. Ela levará a política russa na direção contrária àquela que desejamos.”

Para entender por que os americanos continuam fazendo escolhas catastróficas, conduzindo-nos direto ao desastre, é preciso voltar ao século 20, pois ele não foi nem “curto” (Hobsbawn) nem “longo” (Arrighi), mas o século das revoluções e contrarrevoluções mais importantes, que configuraram nossa atualidade e que ocorreram no Sul do mundo.

Para os ocidentais, a economia de mercado e a democracia tinham vencido a batalha da “civilização” do século 20. Só faltava capitalizar a vitória impondo por toda parte o “neoliberalismo” e os direitos humanos.   

Na realidade, o século 20 foi o século da “revolta contra o Ocidente”, o século das guerras contra seu imperialismo, o século das guerras civis mundiais (e não apenas europeias), que se prolongaram depois da segunda guerra mundial. E é daqui que é preciso partir para compreender a situação contemporânea. 

Os ocidentais, concentrados no confronto Leste/Oeste, não entenderam que as guerras anticoloniais, em menos de um século, estavam revertendo a relação de forças entre o Norte e o Sul. Os “povos oprimidos” tinham atacado a divisão econômica e política entre centro e periferia, que desde 1492 regia o funcionamento do capitalismo. O poder europeu se fundava sobre a divisão do proletariado mundial entre de um lado trabalhadores que forneciam um trabalho abstrato no Norte, e de outro os proletários, 

camponeses, mulheres, escravos, servos etc., que garantiam um trabalho desvalorizado, gratuito, muito mal pago no Sul bem como o trabalho doméstico gratuito no mundo.
 

O grande mérito da revolução bolchevista foi o de abrir o caminho para a revolução dos “povos oprimidos”. O que mudaria radicalmente a relação de forças para sempre. Contudo, os EUA haviam conduzido uma guerra política e econômica encarniçada contra o Sul (“terceiro mundo” na época) depois da segunda guerra mundial. Eles efetivamente conseguiram comprometer a revolução mundial, mas esta sedimentou mudanças tão radicais na organização do mercado mundial e nas sociedades liberadas do imperialismo, que as revoluções anticoloniais, mesmo tendo abandonado o projeto comunista ou socialista, estão na origem da distribuição dos poderes políticos contemporâneos, bem como do deslocamento dos centros do capitalismo do Norte para o Sul e o Leste.

A grande novidade não deve ser buscada na revolução digital, no capitalismo cognitivo, na biopolítica, na bioeconomia (todos esses conceitos traduzem um limitado ponto de vista eurocêntrico), mas na mudança das relações de força entre forças econômico-políticas.
 

A reconfiguração do capitalismo não ocorreu principalmente no Norte, mas no Sul do mundo, como agora fica cada vez mais claro.
 

Para Giovanni Arrighi, o coração do antagonismo da segunda metade do século 20 “não é outra senão a luta de poder ao longo da qual o governo americano tentara conter, pelo uso da força, o duplo desafio que representavam o comunismo e o nacionalismo do terceiro-mundo”.

Único entre os operaistas a ter compreendido as revoluções do século 20, ele demonstrou que a contrarrevolução monetária, iniciada com a abolição da conversibilidade do dólar (1971), constituiu uma resposta direta à mais importante guerra anticolonial posterior à segunda guerra mundial, aquela que sinalizou a mobilização geral contra o imperialismo em todos os países do Sul. “É preciso fazer como Diem Ben Phu », clamava Fanon na Argélia ainda sob ocupação francesa.

Enquanto os marxistas europeus atribuem a reorganização capitalista unicamente às lutas capital-trabalho e à concorrência entre capitalistas, Arrighi afirma que “as políticas estadunidenses na virada dos anos 60/70 visaram liberar-se das coerções monetárias, na luta que empreendiam pela dominação do terceiro mundo”.

Os custos (externos e internos) da guerra conduzida pelos americanos contra os Vietcongue “não só contribuiram para a redução dos lucros, mas foram a causa principal para a brutal desvalorização do dólar que daí resultou”.

A colônia é tão moderna quanto a fábrica de Manchester, ela faz parte da cadeia de valor assim como Detroit e Turim, e ela se revelará o lugar mais propício para a subjetivação revolucionária, colocando em crise o centro a partir da periferia.

“Como para a liquidação da paridade ouro/dólar, foram as guerras e as revoluções no Sul, e não a concorrência entre capitalistas das três grandes economias do mundo, as responsáveis pela contrarrevolução monetarista de 1979 – 1982”.

A arma monetária mobilizada contra o Sul teve repercussões muito pesadas sobre as lutas de classe no Norte. “Mas o estímulo mais forte veio da crise não resolvida da hegemonia estadunidense no terceiro mundo, não da crise de lucratividade”. As diferenças entre o Norte e o Sul no final do século 19 e no fim do século 20 “são mais importantes do que as relações entre trabalho e capital.”

Mas também na primeira metade do século, as coisas essenciais aconteceram no Leste e no Sul, pois a organização das revoluções cujas vitórias se afirmarão depois da segunda guerra mundial se implantaram e se aceleraram depois dos massacres da “grande guerra”.

No coração dessas lutas que derrubaram alguns séculos de colonização, os comunistas desempenharam um papel central, pois transformaram a “pequena guerra” de Clausewitz em guerra revolucionária, em “guerra de partisans”. Invenção estratégica de uma importância comparável ao esquecimento de que foi objeto por parte daqueles que gostariam de mudar o mundo.

O grande autor conservador Carl Schmitt (nazista, na época), mesmo sendo anticomunista, teve o mérito de reconhecer a enorme energia e potência política das revoluções anticoloniais, enquanto os seus admiradores operaistas, como Mario Tronti, que o introduziu na Itália, tem uma insuportável condescendência frente a essas revoluções “camponesas”.

«A irregularidade da luta de classes” organizada na guerra de partisans, articulada a formas mais clássicas de combate travadas pelo Exército vermelho ou pelo Exército do povo “coloca em xeque não só uma linha, mas o edifício inteiro da ordem política e social (...) A aliança entre a filosofia e o partisan, conseguida por Lenin (...) provocou nada menos que a explosão de todo este mundo histórico eurocêntrico que Napoleão esperava salvar, que o Congresso de Viena esperava restaurar”.

Clausewitz, « um oficial de carreira, não podia engendrar um partisan, só um revolucionário profissional como Lenin poderia fazê-lo. Mas o partisan do bolchevismo russo é pouca coisa de um ponto de vista sociológico – quero dizer, na realidade concreta – comparado ao partisan chinês. Mao ele mesmo construiu seu exército de partisans e sua elite de partisans”.

Numa conversa com um maoísta (Joachim Schickel) em 1969, Carl Schmitt afirma que a dimensão global da luta foi introduzida pela guerra de partisans : «o problema do partisan não era só um problema internacional, porém global”.

E acrescenta que em 1949, com a proclamação da República Popular Chinesa “pensava-se por fim alcançar a paz mundial, mas menos de um ano depois a Coréia começou”, sem esquecer Diem Bien Phu, a Argélia, Castro etc. (sequência que ele definirá, ao mesmo tempo que Hannah Arendt, em 1961, de «guerra civil mundial»).

Raymond Aron foi vítima do mesmo preconceito eurocêntrico dos operaistas tipo Tronti, pois escrevia a Schmitt que “o problema do partisan era o problema dos povos pobres” e privados de tecnologia, com atraso tecnológico e organizacional, poderíamos acrescentar. Preconceito que ele compartilhou com os marxistas ocidentais.

Evocar a guerra dos partisans não constitui uma simples comemoração histórica, pois ela continuará, animada por outros “povos pobres” e outras forças políticas e conseguirá sempre desfazer os imperialistas mesmo depois da derrota do socialismo.

 

Nova distribuição do poder no mercado mundial

 

Com o fim da guerra fria, essa potência revolucionária transformada em potência produtiva neocapitalista, contida e dirigida pelo Estado Soberano, cujo exemplo mais visível é a China, não tardará a impor-se. Depois da Revolução Cultural os marxistas “reformistas” converteram a imensa energia da máquina revolucionária em trabalho, ciência e tecnologia. 

Ainda que sob a forma de um “capitalismo de Estado” (“socialismo de mercado”, em chinês), impõe-se uma reversão geopolítica entre o Norte e o Sul, que se manifesta igualmente pelo fracasso de qualquer guerra colonial conduzida pelos EUA (Iraque, Líbia, Síria, Afeganistão) e pelos fluxos migratórios em direção ao Norte (subjetividades provenientes das    lutas de liberação do colonialismo).

 

As revoluções (violentas ou pacíficas, como na Índia) criaram um mundo multipolar onde as ex-colonias e semi-colonias desempenham um papel central, o que os EUA não podem e não querem aceitar. Esses últimos continuam a sonhar em ser um Império, ao passo que não têm a força econômica e política nem exterior nem interior (apesar do exército enorme) para impor sua vontade unilateral. 

 

Com o fim da guerra fria não temos mais o enfrentamento entre socialismo e capitalismo (a revolução mundial foi derrotada bem antes de 1989), mas diferentes capitalismos e diferentes soberanias disputam a hegemonia econômica e política do mundo.

Os EUA, ao contrário, contam para si mesmos uma história que não corresponde às relações reais entre potências econômico-estatais. O “capitalismo” e o “Estado”, inimigos jurados das revoluções do século 20, parecem ter vencido, mas o capitalismo e o Estado não são por toda parte os mesmos, e sobretudo não estão todos sob controle dos americanos (como é o caso da Europa!). Ao contrário, exatamente como há mais de um século, esta vitória do capitalismo sobre o comunismo dispara uma concorrência (a “verdadeira” concorrência, não a do neoliberalismo!) sempre pronta a transbordar a guerra. Diferentemente da guerra de 1914, esta pode ser nucler e pode alimentar de modo definitivo a catástrofe ecológica. 

Os erros e responsabilidades dos EUA são imensos, como imensa é a covardia, o servilismo dos europeus depois da queda do Muro de Berlim. 

Primeiro “erro”: uma vez desaparecida a URSS, não haveria uma única potência, os EUA, como símbolo do fim de História (na realidade, o que vem à luz é antes o fim da hegemonia americana). Curiosmente, o livro  Império foi vítima da mesma “ingenuidade” de seus inimigos, pois as transformações das revoluções tinham consolidado uma multiplicidade de forças impossíveis de submeter ao unilateralismo da hegemonia americana. Ao acordar de seu sono cheio de sonhos, os EUA declararão a China o inimigo principal e com ela todos os Estados (a começar pela Rússia) que não juram fidelidade a esse Império em bancarrota.

Segundo erro : associado à ilusão do Império há uma segunda ilusão que decorre da primeira. Uma vez desmanchado o comunismo, só os terroristas resistem à hegemonia americana. O terrorismo islâmico é elevado ao posto de inimigo principal contra o qual se deve travar uma guerra infinita. Na realidade, o terrorismo não passava de um epifenômeno, alimentado pelos EUA e os ocidentais, da potência em ascensão de ex-colônias e semi-colônias, sólidas e ameaçadoras. 

Terceiro erro: o Pentágono e o Exército americano não só não compreenderam a conjuntura política mas nada aprenderam das “guerras de partisans” que no entanto tinham combatido (e por elas sido derrotados!), pois continuaram a perder sistematicamente para todos os “povos pobres” que quiseram submeter à sua vontade. Mesmo se a guerra dos partisans do pós-socialismo não tinha a grandeza do projeto e da organização da guerra conduzida pelos comunistas, ela era suficiente para desafiar a maior potência militar-tecnopolítica do planeta (à diferença de GAFA, verdadeira imagem do capitalismo após a segunda guerra mundial). 

O que chamei de modo eufemístico de “erros” (na realidade, uma estratégia suicidaria pelos EUA e homicida para o resto do mundo) produziu, vale a pena repetir, 17 guerras desde 1989, milhões de mortos, a destruição de cidades e países, consumindo e dilapidando imensas fortunas e recursos naturais, minando um Estado de direito (Guantánamo) já suficientemente desacreditado pelo racismo que o constitui.

 

A economia, arma de destruição em massa

Mas há uma outra arma de destruição em massa nas mãos do imperialismo americano que será utilizada em escala mundial contra todos os povos do planeta: a “economia”. Faca de dois gumes, pois produzirá um caos “econômico” que vai se somar à desordem e multiplicá-la, na luta entre Estados-potências, mergulhando o capitalismo na guerra e no fascismo. 

Há mais de cinquenta anos, pagamos caro pelas tentativas fracassadas de interromper o declínio da potência americana. Depois de 1945 os EUA representavam a metade da produção mundial. A partir dos anos 60 essa percentagem não cessa de diminuir, mordiscada nos anos 70 pela Alemanha e o Japão, e há trinta anos pelas potências saídas das revoluções (China, Índia).

A « economia » vitoriosa do coletivismo nada tem a ver com a narrativa coberta de ideologia que é o neoliberalismo (mercado, oferta, demanda, autorregulação, empreendedor de si etc.). A primeira guerra mundial produziu uma hibridação entre Estado, monopólios, guerra, sociedade, trabalho, técnica e ciência que nenhuma “governamentalidade” (nem a de Foucault nem a de seus amigos, nem a governança dos diferentes imperialismos) jamais conseguirá reconduzir ao “mercado” da oferta e demanda. O que se chama de neoliberalismo produz  não  concorrência, mas fortalecimento dos monopólios e dos oligopólios (o único monopólio a ser sistematicamente demolido é o dos sindicatos, ao passo que os monopólios públicos serão sistematicamente privatizados);  não  autorregulação, mas o desenvolvimento selvagem    de todos os desequilíbrios possíveis;  não  a democracia, mas um Estado forte, autoritário, une democracia compatível com o fascismo ; não uma nova « produção» biocognitiva, mas apropriação, despossessão, pilhagem e roubo pela finança.

Um empresário do Sylicon Valley, Peter Tiel, explica a natureza do mantra dessa economia vitoriosa, a concorrência econômica: « Mas no fundo o capitalismo e a concorrência são antagônicos.  O capitalisme se baseia na acumulação sobre acumulação do capital. Ora, numa situação de concorrência perfeita, todos os lucros são anulados.  A lição para os empresários é clara … A concorrência é para os perdedores».

Do mesmo modo o equilíbrio – outro grande significante da ideologia neoclássica e neoliberal, implica a morte certa do Capital, donde sua contínua e necessária reprodução de “diferenças” (da riqueza e da miséria, das desigualdade nos salários, do patrimônio, do acesso à saúde, da formação, da moradia etc.

A abolição da conversibilidade do dólar em ouro fez da moeda uma arma temível que a política da dívida, a partir de 1979, transformou no maior dos programas de captura da riqueza e imposição de privatização que a história já conheceu.

A estratégia da economia de mercado (financeirização, a globalização/colonização, a centralização monopolística produziram a forma contemporânea das guerras de conquista coloniais, que começaram saqueando a África nos anos 80, continuaram na América Latina, passando pelas sociedades do Sudeste asiático no fim do último século, para chegar enfim na Europa (a Grécia, exemplo para toda a Europa, da imposição de interesses dos credores).

A economia vitoriosa produziu as condições de sua impossibilidade: lucros enormes e dívidas colossais, riquezas inéditas concentradas nas mãos de alguns indivíduos e miséria para milhões de pessoas. Os EUA têm a maior concentração de lucro fruto de pilhagem financeira e o maior endividamento do planeta. O capitalismo não conseguirá sair do abismo entre lucros imensos/dívida colossal senão através da guerra e do fascismo. Deste “axioma” da tradição revolucionária hoje parece não ter sobrado nada. 

A predação do capitalismo financeiro para interromper o declínio dos EUA opera igualmente no proletariado do centro, notadamente dos EUA, suscitando formas de guerra civil de baixa intensidade. A guerra civil larvar que as carcome não foi criada por Trump, ele limitou-se a nomeá-la e a consolidá-la. Ela certamente é o ponto mais fraco da potência que se quer global. Os fundamentos da maior potência do planeta repousam sobre areia. Trata-se de um signo a mais de seu declínio, da corrupção de suas instituições, do fracasso de seu sistema político baseado, desde seu nascimento, na divisão racista da sociedade.

 

A economia vitoriosa revelou muito rapidamente para onde ela nos conduzia: o assim chamado “neoliberalismo” teria sido pensado para evitar os inconvenientes do liberalismo clássico, isto é, a guerra entre potências imperiais, a guerra civil, o fascismo, o nazismo, a crise econômica e financeira que a “livre concorrência” tinha produzido entre o fim do 19 e o início do século 20. Na realidade, de modo a um só tempo idêntico e diferente, estamos hoje no mesmo impasse catastrófico: crise econômica e política permanentes, Estado “forte”, novas formas de fascismo, racismo, nacionalismo, sexismo, guerras e guerras civis que só não assumiram o tom genocida da crise do primeiro neoliberalismo porque não há nada de parecido com a revolução soviética, nada de parecido com as insurreições operárias no Norte, nada de parecido com as guerras de longa duração travadas pelos comunistas no Sul. 

Se a economia anda mal, a democracia tampouco vai bem. A centralização do poder político no executivo, a desvalorização do parlamento, o Estado de exceção permanente, são a outra face da centralização da economia. As duas concentrações de poder (econômica e política) são paralelas, convergentes, e uma reforça a outra. Separar a economia da política, isto é, separar a política do Estado das lutas de classe só pode conduzir à confusão, ambiguidade, à conivência com as forças políticas mais que duvidosas, cuja exposição foi feita por Giorgio Agamben durante a pandemia.

A guerra na Ucrânia marca um passo ulterior em direção ao devir fascista do mundo e notadamente da União europeia que, face ao “inimigo”, reencontrou intacto o ódio, o racismo, o sexismo de que ela foi o berço desde o século 19. A guerra liberou as pulsões agressivas recalcadas pela experiência nazista e fascista: a Alemanha decidiu acelerar o rearmamento e o Japão acolhe os mísseis nucleares dos EUA em seu território. 

O “fascismo” é uma opção sempre possível para a “economia de mercdo”. Um dos fundadores do neoliberalismo resume, no título de um artigo de 1929, a realidade que toma forma sob nossos olhos: “A ditadura nos limites da democracia”.

Economia financeira e imperialismo em sua impossibilidade de sair dos impasses respectivos se dedicam, como há um século, à potência de destruição de todo tipo de guerra.

Economia e política, em sua impossibilidade de sair dos respectivos impasses, utilizam os mesmos remédios de um século atrás.

 

Por que Putin invadiu a Ucrânia

 

É nesse quadro multipolar devastado pelas guerras econômicas que os EUA não querem reconhecer (a não ser por palavras) que a guerra estourou. Eles não podem aceitar uma nova ordem mundial reivindicada pela China, Índia, e mesmo pela Rússia, pois não conseguiriam sustentar a concorrência, e de toda maneira o capitalismo desenfreado não permite chegar a um compromisso e a uma regulação. Ao contrário, os americanos empurrados pelo par lucros fabulosos/dívida ilimitada, colocam travas de todas as maneiras possíveis e imagináveis, provocando o caos como estratégia política.

Os americanos têm todo interesse em manter a guerra e a desordem pois somente nesse caos sua superioridade militar pode garantir uma primazia que sua economia já não lhes garante. 

O enfrentamento entre a Aliança Atlântica e a Rússia é um caso de escola dessa estratégia. Deixo a palavra a embaixadores e militares para desenhar a escalada que conduziu ao conflito durante os trinta anos que se seguiram ao desmoronamento da URSS. Um embaixador italiano    que leu documentos diplomáticos até há pouco tempo “secretos” da época da dissolução da URSS escreve: “A partir dos documentos americanos, alemães, ingleses e franceses liberados, está claro que os líderes do Kremlin tinham recebido uma série de garantias dos ocidentais  (François Mitterrand, Giulio Andreotti, Margaret Thatcher e o próprio Helmut Kohl) : a OTAN não se moveria um centímetro para o Leste, « not one inch estward », para utilizar a fórmula de James Baker, secretário de Estado dos EUA na época. Baker dizia que ele não pensava em absoluto colocar em perigo os interesses soviéticos e não uma mas três vezes confirmou que a Aliança Atlântica não se mexeria... É isso que foi dito a    Gorbachov e Shevardnadze, e quando o ministro da defesa russo, o marechal Jazon perguntou ao sucessor de Thatcher, John Major, se ele achava que alguns países europeus poderiam aderir à OTAN, a resposta foi que nada disso poderia acontecer”.


Em 2003, uma escolha catastrófica, a segunda guerra do Golfo, com seus milhares de mortos para vingar o “principal inimigo” dos EUA, desencadeou uma segunda escolha tão problemática quanto. Nenhum dos países do Norte queria se engajar nessa aventura sem futuro no Iraque. Só alguns países do antigo Pacto de Varsóvia enviaram tropas ao Iraque. Os EUA, para recompensá-los pela participação na operação  ‘Desert Storm’ os incorporaram imediatamente na OTAN. 

Em 2007 Putin pedia a constituição de uma nova ordem mundial. O que significava certamente para ele a possibilidade de conduzir livremente sua política interna (esmagamento das minorias, destruição da Chechênia, desmantelamento da oposição, controle da mídia, distribuição de poder e riqueza entre as oligarquias, eliminação física dos adversários, etc.) mas igualmente um reconhecimento das novas relações de força pelos EUA.

Os russos se alarmaram de fato só quando em 2008 a OTAN quis incluir na Aliança Atlântica a Geórgia e a Ucrânia. 2008 é igualmente o ano de uma outra catástrofe proveniente ainda dos EUA, que vai semear o pânico em todo o planeta e determinar uma intensificação das tensões entre as potências: a maior crise financeira desde 1929. A economia que tinha vencido o comunismo agregava o caos ao caos, a desordem à desordem. 

Em 2014 a OTAN (os americanos) e a Europa favoreceram e reconheceram o golpe de Estado na Ucrânia com o único objetivo de continuar a expansão para o Leste, militarizando a zona (desde então eles armam a Ucrânia). Os EUA são especialistas em golpes de Estado. Entre 1947 e 1989 organizaram direta ou indiretamente sessenta e oito, entre os quais os mais importantes foram os que afligiram a América Latina. Agora eles tentam novas modalidades, como o golpe articulado contra o PT no Brasil, que abriu as portas a Bolsonaro, organizado, principalmente, novidade notável, pelo Ministério da Justiça.


Nas redes sociais italianas circula nesses dias um resumo de falas muito significativas feitas por um militar italiano à televisão (Rai News) sobre a estratégia da OTAN.  Leonardo Tricario, ex–comandante da força aérea e das forças italianas na guerra do Kosovo, ao exigir um processo contra Putin por crimes de guerra, preserva uma rara lucidez:

- O secretário geral da OTAN « fala demais” sem consultar seus aliados

- A OTAN não ouve a Itália, mais interessada na costa mediterrânea, e está tomada por uma histeria anti-russa e obcecada pela expansão para o Leste

- Os EUA escolheram curvar-se a todas as exigências dos países bálticos, furiosamente anti-russos

- A OTAN prometeu à Ucrância sua entrada na Aliança, brandindo uma proteção que ela não poderia lhe garantir.

“Jogaram gasolina na fogueira, vamos ter que pagar o prejuízo”

 

Putin reagiu segundo a lógica “louca” (mas ele não é o único “maluco” nessa história) que rege as relações estratégicas entre potências. A morte de civis constitui a última de suas preocupações e o risco de uma escalada descontrolada é patente. Sleepy Joe, entre uma siesta e outra, fala da terceira guerra mundial, Putin coloca em alerta os militares responsáveis pelas armas nucleares, os representantes da OTAN falam da eventualidade de um enfrentamento nuclear, como se nada fosse. Seria preciso um outro Kubrick para colocar em imagem este delírio. Com uma angústia suplementar, pois os atores contemporâneos deste drama com certeza são mais perigosos!


Só podemos estar do lado dos inocentes que morrem na Ucrânia sob os bombardeios, espremidos entre dois cinismos que jogam pesado para determinar o futuro do mercado mundial. Os russos não querem ceder à vontade hegemônica americana que se manifesta pela instalação dos misseis nucleares na Romênia, Polônia e (por vir) na Ucrânia, enquanto a estratégia americana do caos é totalmente “racional”: isolar a Rússia (para em seguida isolar a China) e assim romper a aliança em gestação entre as duas potências ex-comunistas, reagrupar os europeus por trás dos EUA que, através da OTAN, continuam a ditar sua “política externa e sua política econômica, recuperando-se assim de uma enésima derrocada no Afeganistão.

Contrariamente ao que se acredita, o enfrentamento entre os EUA e a URSS, que é o pano de fundo desta guerra, não é entre democracia e autocracia, mas entre oligarquias econômicas semelhantes em muita coisa, notadamente no fato de serem oligarquias rentistas.

« É mais realista considerar a política econômica e estrangeira dos EUA em termos de complexo militar-industrial, complexo petroquímico (e de minério), complexo bancário e imobiliário, do que em termos de política de republicamos e democratas. Os principais senadores e deputados do Congresso não representam tanto seus Estados e distritos mas os interesses econômicos e financeiros de seus principais contribuintes no financiamento de suas campanhas políticas» (Michael Hudson). Desses três monopólios rentistas, o militar-industrial e o petroquímico contribuíram amplamente na estratégia que levou à guerra. O primeiro é o principal fornecedor da OTAN, o segundo quer substituir a Rússia como fornecedor principal do gás na Europa e, eventualmente, apropriar-se de Gazprom.

 

Lenin, guerra e revolução

 

É inútil fazer propostas para uma eventual resolução do conflito (evitar fazer da Ucrânia uma presa do Leste ou do Ocidente, dar-lhe um estatuto semelhante ao da Finlândia etc). Não nos interessa, mesmo se pudéssemos, interferir nesse jogo estratégico, e em todo caso, nosso problema é outro: encontrar um posicionamento político num quadro monstruoso que se anuncia há anos e que não tivemos a coragem de olhar de frente. Pois a guerra na Ucrânia corre o risco de fazer da guerra e das guerras de classe, raça e sexo o cotidiano dos próximos anos. 

O posicionamento mais claro em relação à guerra ainda é o dos socialistas revolucionários citados no início da Primeira Guerra Mundial (a reversibilidade entre produção e destruição, trabalho e devastação, sociedade e mobilização geral que a caracterizou continua sendo a matriz de nossa atualidade).

A situação é muito semelhante àquela enfrentada pelos bolchevistas em 1914: a guerra entre forças econômico-políticas para dividir a potência e as riquezas de um mundo (Lenin dizia na época: para dividir os escravos!) gerido por criminosos ensandecidos e sedentos de poder e lucro e capazes de tudo (hoje Biden e Putin) e uma oposição desorganizada pela traição dos partidos social-democratas (hoje a oposição é até inexistente).

Os partidos socialistas, tendo votado os créditos de guerra, se aliaram aos diferentes Estados, determinando assim a impossibilidade, para sempre, de uma revolução no Ocidente e o começo da integração do movimento operário pela máquina Estado-Capital. Portanto, a primeira coisa a evitar é reproduzir o comportamento dos socialistas da época, isto é, tomar partido por uma das potências, integrar-se à lógica de um dos Estados-nação em guerra e fazer seus os interesses de nossos inimigos, pois tanto Biden como Putin são “inimigos do proletariado”.

 

Desde o começo da “grande guerra” Lenin tinha lançado sua palavra de ordem que acabou vingando no final: transformar a guerra imperialista em guerra revolucionária, e convidava os soldados a mirar não mais os outros proletários que o Estado designara como o inimigo, mas a virar os fuzis contra seus próprios oficiais, seus próprios capitalistas e seu próprio Estado.

A situação mudou profundamente, mas a posição dos revolucionários da primeira metade do século 20 ainda preserva verdades a serem reatualizadas: inventar um novo ponto de vista internacionalista que possa circular entre “todos os países”, mesmo que não se tenha a possibilidade de virar os fuzis conta a máquina de guerra. Não há outra alternativa senão subverter os imperialismos, derrubar os insanos que os comandam, construir organizações políticas autônomas. 

O que deve surpreender não é a aparente irrealidade atual dessas palavras de ordem, mas o fato de que o pensamento crítico há cinquenta anos tenha cuidadosamente evitado    confrontar-se à “guerra” e à “revolução”.

É esse espanto que em 2016 nos levou, Éric Alliez e eu, a publicar  Guerras e Capital , e é o mesmo estupor diante da irresponsabilidade do pensamento político contemporâneo que está na origem do meu último livro sobre a revolução,  O intolerável do presente, a necessidade da revolução  [a sair neste mês de março pela n-1edições]. Guerras e revoluções, apesar da denegação de que são objeto por parte do pensamento crítico, continuam determinando o início e o final das grandes sequencias políticas. A guerra é parte integrante da máquina Capital-Estado do mesmo modo que a produção, o trabalho, o racismo e o sexismo. Desde a primeira guerra mundial, todos esses elementos estão integrados de modo indissolúvel e funcionam conjuntamente como um todo. E como há um século eles vão desembocar em situações comparáveis às que vivemos nestes momentos. 

O marxismo da primeira metade do século 20, o que organizou e praticou a “guerra dos partisans”, ainda tem coisas a transmitir, mesmo se uma grande parte de seus conceitos e palavras de ordem envelheceram e hoje são impraticáveis. Seu  pensamento estratégico para opor-se à guerra e ao capitalismo (que todas as teorias que temos elaborado para substituí-lo se revelaram incapazes de propor) foi completamente ignorado, quando pode constituir uma orientação do pensamento e da ação se tivermos a capacidade de a requalificar em função da nossa época. 

O pós-estruturalismo, a desconstrução, a biopolítica, o espinosismo, o pensamento ecológico, as teorias feministas, a micropolítica e a microfísica do poder etc, ou seja, todo o esforço que a partir dos anos 60 foi dedicado para tentar construir uma alternativa à luta de classes marxista (sem conseguir!), todo esse esforço, pois, se não se articular a um pensamento estratégico da guerra e da revolução, corre o risco de tornar-se impotente, pois as guerras e revoluções são ainda e sempre, infelizmente, o escoadouro “natural” da ação do capitalismo e de seus Estados.

Sem a invenção de um pensamento estratégico à altura da máquina Estado-Capital contemporânea, as alternativas são sombrias: destruição instantânea por uma guerra nuclear (mesmo uma guerra convencional pode ser amplamente suficiente – em 2021 os Estados gastaram pouco mais de dois trilhões de dólares em armamentos, a metade pelos EUA e Europa, bem na frente da China e da Rússia – nos últimos vinte anos o gasto dobrou); destruição pelo aquecimento climático, escalonada no tempo; implosões das classes em luta como Marx previra no Manifesto do Partido Comunista. Sem um pensamento alternativo capaz, com realismo, de articular, repito, guerra e revolução, nas novas condições de ação do capitalismo, dos Estados e dos movimentos políticos contemporâneos, é o que nos espera. 

04/03/2022

Tradução Peter Pál Pelbart

 

Maurizio Lazzarato é pensador e pesquisador independente. Lança agora, pela n-1, 

O intolerável do presente, a necessidade da revolução